quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A Menina


Agora, quando todos os instantes podem ser adjetivados como derradeiros, numa linha de tempo intermitente de felicidades fortuitas que une o nascimento ao túmulo, tudo o que digo é que quando escrevia havia na minha mente o gosto por entender a questão da conexão da linguagem com a psique. É claro, caro leitor, que existe este aparte entre psique e matéria, não se discute. É claro que existe a distinção entre os acontecimentos e como o interpretamos. Fatos sempre rolaram pelos precipícios imaginativos que abismavam meus desejos das realizações. Por conseguinte, encovadas no fundo deste despenhadeiro da esperança, as frustrações gritam seu desespero. Lamúrias e queixumes de um velho apiedado, traduzidos por simples palavras. Obviamente coloquiais, porque descrevem de forma simples e solta a falta de estruturação de uma vida. Seus significados navegam pelo oceano da idade sem vínculos precisos um com os outros. São apenas traduções de momentos, amontoados no esquecimento daqueles que me conheceram, amealhados pelo destino e apenas vívidos na memória deste aqui que ora apenas diz.

Além disto, palavras, ou a escolha delas, permitem ao interlocutor atento ouvir o que está atrás da porta do corpo físico. Permitem sentir parcialmente os traumas de quem narra, a dor de fatos corriqueiros que nada representariam caso a entonação não denunciasse algo mais. Proveem o que falta à visão para transtornar nossa percepção com uma obliquidade alheia. Para descaracterizar todos nossos modelos e arquétipos, por mais precisos que estes sejam, independentes de quanta meditação a mente necessitou para ordenar a compreensão. O tom, os trejeitos, aquela ligeira rouquidão das vozes arrastadas pela garganta, roubadas do íntimo em que se apegaram e se trancafiaram, nos revelam pelo avesso.  

Esse exercício de ouvir é o que dificilmente se pratica nos nossos dias, permeados de urgências e barreiras psicológicas. Todavia, sei que é necessária uma harmonia entre ouvi-la e senti-la. Pois, se houver uma conspiração deste destino que cá me largou, um dia posso saborear as tuas palavras pela fome da minha sensibilidade, ávida em percorrê-la pelas entranhas onde a menina se escondeu. Neste futuro ainda muito incerto, gostaria de dar a mão para esta menina, abraçá-la e dizer que os sonhos não foram perdidos, apenas se espalharam. Poderíamos assim recuperar alguns. Quem sabe se não forem os mais importantes? Quem sabe se não serão aqueles que cessarão a tua busca, desprovida das lágrimas congeladas pelo passado? Mas há pouco tempo para isto.

São Jorge - Saint George

  Imagem gerada pelo Midjourney São Jorge! Mostraste a coragem misericordiosa que me livrou do dragão que sempre carreguei em meu coração. I...