quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Onde está a poesia? (Parte I)


Não escrevo estas linhas com saudosismo um tanto desmedido, nem com qualquer resquício démodé advindo de uma pessoa que não caminhou com a evolução dos costumes. A rigor, nem sei se posso alcunhar estas últimas décadas com algo parecido a evolucionárias, mas isto é uma questão que eventualmente eu discutirei, com subsídio da minha leitura do Niall Ferguson. O fato é que atualmente eu estranho a falta da poesia na música popular brasileira, diferentemente de um passado que emblematicamente eu representei pela música “Esquecimento”, do Fagner e Brandão. Esta canção está no maravilhoso álbum Orós, de 1977, que possui uma forte expressividade interiorana, vinda do sertão cearense. Além de contar com a participação de excelentes músicos, como Dominguinhos, Hermeto Paschoal (que assina o arranjo), Itiberê, Márcio Montarroyos, dentre outros. Não consigo perceber nada parecido nas rádios que gritam nos carros, quase sempre com um incômodo bum, bum, bum. Parece que no meio desta barulheira há algumas vozes sincopadas, nem tanto como recurso estético, talvez mais por deficiência do como se dizer. Não noto músicas parecidas na TV, embora eu acredite que seja por minha culpa, já que não consigo mais assistir aqueles apresentadores atrozes, que querem aparecer mais do que o assunto que apresentam.

Então, onde está a poesia?

Passei a minha infância na cidade de São Paulo. Mais precisamente na zona leste, no meio da multidão corintiana, das ruas sem árvores, de construções abandonadas onde eu empinava pipa. Nunca fui um craque – bem longe disto – mas insistia no futebol de salão na quadra da Escola Joly, bem no meio da Rua Serra de Botucatu. Aprendi a andar de bicicleta nas vias fechadas em frente às delegacias, bem no meio da revolta estudantil de 1968 quando coquetéis molotov singravam por cima das armas da polícia política para estourarem nas fachadas. Eu não sabia disto, nem aquelas crianças que me acompanhavam nas noites alegradas por aqueles lugares presenteados, no meio de prédios decaídos, estes sim ladrões de espaços. O ano terminou (ou não, conforme algumas opiniões) com o Ato Institucional nº 5. E tudo ficou negro na sociedade brasileira, embora eu pense que clareou a nossa arte.

Naquela época, as baladas dos Beatles já tinham se transformado em músicas com letras um pouco mais elaboradas, como a da longa e sinuosa estrada que leva até a sua porta. Além disso, se iniciava o processo de criação política, com as músicas de protesto que deixariam um legado de canções de alta qualidade poética, com as dos álbuns “Nos Dias de Hoje” de Ivan Lins e ”Construção” do Chico Buarque, além da beleza romântica do Vinícius de Moraes e da magnitude estética de um Tom Jobim e tantos outros. Isto me lembra de que em 1974 apareceu a versão definitiva de Águas de Março, do Tom. É extasiante pensar que uma simples obra de uma casa em Angra dos Reis virasse uma poesia musicada em mais de 50 interpretações pelo mundo. Tive o prazer de conhecer o garçom do Garota de Ipanema que forneceu o papel para o Tom escrevê-la (na realidade era aquele papel grosso que envolvia vários maços de cigarro). Pena que alguns poucos anos foram suficientes para que eu perdesse o nome dele na minha memória.

Mas, onde está a poesia?

Será que a minha geração migrou a atenção para o vigor e profundidade dos livros, abandonando assim os ritmos que, no fundo, limitariam as alternativas poéticas? De fato, conheci Maiakovski muito cedo, como cedo também me envolvi com a poesia do Drummond e recuperei as de Fernando Pessoa, um best seller obrigatório da minha adolescência. Passei rapidamente para histórias maravilhosas. Ítalo Calvino, Graciliano Ramos, Philip Roth. Mais recentemente Julian Fuks e Jennifer Egan. Música era algo vinculado aos gritos juvenis, àquela vontade de ritmar as batidas do coração com o que se enxerga no mundo. Livros são os verdadeiros alimentos da mente, que incitam a inteligência e nos permitem vagar por imaginações alheias, ao conhecer a dimensão da alma humana com os instrumentos do processo de amadurecimento. Entretanto, se somente isto explicasse o processo, todos os meus contemporâneos teriam cursado psicologia. A arte nos movimenta porque reflete o que sentimos. E o que sentimos é reflexo do mundo onde estamos imersos, da significação dos símbolos e da complexidade do viver numa sociedade que precisa constantemente ajustar a valoração dos princípios morais e éticos.

Porém, onde está a poesia?

(continua)

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Anjo (série cartas)

Foto tirada pelo autor no Museu de Belas Artes de Dijon

Eu conheço um pouco o trabalho do Jung e a questão da sincronicidade. Creio que o li na década de 80 e o que me vem à mente é um trabalho estatístico rigoroso, que comprova que fatos coincidentes acontecem de forma contumaz na vida de uma pessoa. Porém, o importante é entender a significação destes na dimensão psíquica do ser. Algo assim! E, juntamente com este raciocínio, também ressurge a questão da deificação de uma pessoa ordinária (no sentido de ser conforme aos costumes) que atravessa algum momento das nossas vidas e planta a semente da benevolência nas nossas intenções. Coincidência ou um anjo? Previamente, é importante lembrar que um anjo caído tem o mesmo poder de argumentação de um anjo que se mantém no plano divino e a benquerença pode ser uma estratégia para objetivos não tão nobres. A questão de discernir entre eles passa pela constatação se há cobiça nas suas intenções. Parece que às vezes vemos ou sentimos um anjo porque alguém atravessa alguns pensamentos e mostra harmonia com o que estes simbolizavam no próprio íntimo. Ocorre que não se conhece a pessoa que proferiu aquelas vozes ou escreveu aquelas palavras, nem como as palavras chegaram à sua boca ou teclado. Não se conhece suas vicissitudes e realizações. Nada além das linhas ou sons corroboram para a classificação endeusada, porque o que está feito mexe apenas com uma parcela de quem cada um é.  Ademais, eu tenho ciência de que isto não é suficiente para alguém se sentir anuído com os seus próprios sonhos. O mundo se estende além das telas de computadores ou de conversas casuais, nas quais seja possível ler amiúde os pensamentos alheios, por vezes repetitivos para que haja a formação de uma ligação de influência, por vezes inéditos. Ele está no cotidiano das pessoas com quem se convive, nos membros da família, nos objetos e mementos, dentro das casas, na solidão dos quartos.  Todos estes ambientes e pessoas formam o universo de cada um, com suas significações e prioridades. Um anjo pode cair. O que fascina pode ser ojerizado. Tudo dependerá do que construírmos como futuro, do que daquele momento de reflexão para frente será significante para a tomada de decisões. Se há uma boa vontade, ou há abnegação a tornar seu coração o influenciador das escolhas, provavelmente se viverá num futuro melhor, porque é do princípio existencial das pessoas de bem fazer e receber o ... bem.

E sobre as decisões, muito tempo pode ter se passado desde aquele momento em que alguém decidiu se encontrar para possibilitar a existência do amor, mas ainda não o encontrou. É importante notar que está escrito “um reencontro consigo mesmo”. Por que isto é importante? Quanto mais nos conhecemos, mais somos capazes de entender o que queremos, o que inclui as questões do coração. Indecisões são navalhas que cortam nosso futuro. Por outro lado, não existem certezas, apenas um conjunto de convicções a respeito do que nos machuca (principalmente) e do que nos arremete para um limbo quase extático, enlevado. Conheci pessoas maravilhosas que se desencantaram comigo. Conheci pessoas maravilhosas que me desencantaram. Mas as histórias de vida distintas, ambições e desejos nos fazem refletir que, no fundo, existem muitas semelhanças entre as almas que estão empenhadas em encontrar uma companhia. Mas esta é uma tarefa difícil, que se assemelha à busca insana da felicidade, por ser vizinha de intenção. Esta é uma tarefa frustrante quando os dias e as pessoas passam sem ficarem perenes na lembrança. Talvez não seja a hora, ou talvez nosso poder de sedução não seja o meio adequado para o que pode ser caracterizado como uma busca da alma gêmea. E eu me questiono agora sobre a possibilidade de existir uma alma tão afim que eu possa alcunhar como gêmea. O certo não seria gostar das diferenças? Não seria perceber que nelas é que cresceremos com indivíduos e amantes? Sempre repito a frase sobre quem ama, ama até o feio. Ama o que lhe é inconveniente. E se diverte com isto porque compreende que, acima de todas as coisas, está a capacidade e o presente divino do amar. Não falo no substantivo amor porque acredito que o verbo amar é o mais correto. É o exercício da vida, a ação de tornar significante nossa jornada até os derradeiros dias. Os encontros serão consequência das atitudes.

Neste contexto, anjo será aquela pessoa que alguém irá amar.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Tempo Fugidio (versão estendida)


A névoa atravessa as ruas e vielas desta cidade velha, de paredes apagadas pelo mesmo tempo que as descama para mostrá-las desnudadas em barro de tijolos.  Teias xadrezes que lentamente invadem as fachadas do ocaso, das pessoas abarrotadas de anos que se limitam a observar uma as outras. Janelas semicerradas escondem o vazio das esperanças. Janelas semiabertas mostram corpos engordados e flácidos, com olhares distantes e inexpressivos. Com lembranças turvadas pelo esquecimento. Com a letargia da derradeira espera por um dia ali estar somente uma janela semicerrada, sem personagem. Apenas um escuro que se derrama no desprezo das ruas.

Há um vazio na rua. Talvez pelo frio matinal ou por ser um feriado. Algo assim. Decerto ele não sabe, porque todos os dias são iguais. Como todas as suas roupas são iguais, os móveis são  sempre os mesmos, aquela rua, aquela sala e aquela cadeira, que o convida para sentar. Ele abandona a claridade, senta e acende um fósforo.

Na chama tênue e trepidante da vela sobre a mesa, que aquece aquele rosto próximo e uma combinação de memória, fatos ou factoides, saudade e tristeza, ele vagarosamente adormece. Alguns instantes se passam no vazio da sala e da mente. O cansaço abate fortemente aquele corpo desgastado pela dureza da vida e pela aspereza das pessoas que transitaram pelo seu passado. Deita lentamente o braço que segurava a cabeça e a encosta na madeira suja, engordurada por restos de refeições negligenciados. Parece que dorme, parece uma criança encolhida entre a cadeira e a mesa.

Ele desperta num tempo onde ela aceitou caminhar ao seu lado. Com um sorriso revelador de felicidade, um tanto malicioso, um tanto contido. O sim percorreu seu corpo e estampou evidências de obsequiosidade. Os tempos idos assim pediam e ele a cortejou como se mandava nos protocolos. Escreveu poesias apaixonadas, cantou serestas na sua janela, deu as mãos para amparar o caminhar de uma moça esperançosa, de traços delicados, que retribuía seus carinhos com o brilho nos olhos. Parecia que a eternidade brincava com seus desejos ao se flertarem com promessas perpétuas de companhia. E assim queriam até que ela desapareceu da sacada da casa onde sempre o esperava. Ela foi embora com suas promessas.

Quis o destino apartá-los. Ou eles mesmos consentiram as trapaças armadas pelas situações. Um dia, eles estavam apaixonados, noutro aquiescidos. Os parques por onde caminhavam não mais envolviam seus corpos no frescor do orvalho. Bem como o quarto não mais escondia seus arroubos. Então, os dias se estendiam no calendário como um varal sem roupas, sem cores pendidas para o futuro. Às vezes ele esticava a mão, talvez para atravessar uma rua, mas o calor daquela pele suave não o retribuía. Olhava para o lado e a falta dela fazia-o alucinar. Não suportava a ausência imposta daquela pessoa que amava, com toda a força de um coração que fora tão romântico, tão dela.

Não sobrou nenhum memento para ele lembrar. A foto, que guardava com tanto carinho na carteira, foi levada sem intenção em algum troco. O beijo no guardanapo se perdeu em algum lugar. A voz, o cheiro e o carinho foram com ela. O tempo fugidio e as décadas ficaram com ele.

Até que muitos anos depois, ela reapareceu num encontro casual, perto do portão de entrada da velha San Gimignano e da muvuca de gente que vinha de todo lado. Pararam um em frente ao outro e por alguns instantes nada disseram, apenas mostraram a surpresa nas feições dos seus rostos. Na pressa de passarem, algumas pessoas momentaneamente bloqueavam seus olhos. Mas era o mesmo olhar que conhecera, sem o brilho. Por mais diferente que o corpo dela fora transformado pelos anos, os belos olhos eram os mesmos. Inconfundíveis como seus próprios. Sentaram numa cafeteria, mas as palavras não abandonavam suas bocas como antes. Tinham dificuldade em mostrar os caminhos percorridos, os infortúnios passados, os segredos revelados. Os dizeres estavam mais atrelados ao presente, que não era comungado, e eles perceberam que eram outras pessoas. Mais amargas e solitárias pela decisão que já se perdeu na esperança de negá-la.  Não eram aqueles amantes, e nem mais seriam.

Subitamente, a ameaça do corpo cair no chão o acorda. Ele percebe que sonhara com fatos reais. Ou talvez apenas pensara, num estado de dormência. O sono da idade sempre confunde pensar com sonhar. Levantou-se e caminhou até a janela para contemplar as pessoas que começavam a passar na rua. Um senhor com um sobretudo preto, grisalho e de bengalas. Logo após um casal e gargalhadas  andavam errantes, para lá e para cá na calçada. A garota ainda olhou para ele quando passou em frente a janela. Algumas pessoas acenavam, a maioria ignorava. Mas ele ficou ali, imóvel e mudo por algumas horas. Talvez, no mais íntimo e escondido dos seus desejos, ele novamente gostaria de vê-la passar. Uma última vez. Para um último suspiro e um último adeus. Seria tudo que lhe resta possuir dela.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Tempo Fugidio


A névoa atravessa as ruas e vielas desta cidade velha, de paredes apagadas pelo mesmo tempo que as descama para mostrá-las desnudadas em barro de tijolos.  Teias xadrezes que lentamente invadem as fachadas do ocaso, das pessoas abarrotadas de anos que se limitam a observar uma as outras. Janelas semicerradas escondem o vazio das esperanças. Janelas semiabertas mostram corpos engordados e flácidos, com olhares distantes e inexpressivos. Com lembranças turvadas pelo esquecimento. Com a letargia da derradeira espera por um dia ali estar somente uma janela semicerrada, sem personagem. Apenas um escuro que se derrama no desprezo das ruas.

Na chama tênue e trepidante da vela na mesa, que aquece um rosto próximo e uma combinação de memória, fatos ou factoides, saudade e tristeza, ele vagarosamente adormece. Desperta num tempo onde ela aceitou caminhar ao seu lado. Com um sorriso revelador de felicidade, um tanto malicioso, um tanto contido. O sim percorreu seu corpo e estampou evidências de obsequiosidade. Os tempos idos assim pediam, e ele a cortejou como se mandava nos protocolos. Escreveu poesias apaixonadas, cantou serestas na sua janela, deu as mãos para amparar o caminhar de uma moça esperançosa, de traços delicados, que retribuía seus carinhos com o brilho nos olhos.

Quis o destino apartá-los. Ou eles mesmos consentiram as trapaças armadas pelas situações. Um dia, eles estavam apaixonados, noutro aquiescidos. Os parques por onde caminhavam não mais envolviam seus corpos no frescor do orvalho. Bem como o quarto não mais escondia seus arroubos. Então, os dias se estendiam no calendário como um varal sem roupas, sem cores pendidas para o futuro. Às vezes ele esticava a mão, talvez para atravessar uma rua, mas o calor daquela pele suave não o retribuía. Olhava para o lado e a falta dela fazia-o alucinar. Não suportava a ausência imposta daquela pessoa que amava, com toda a força de um coração que fora tão romântico, tão dela.  

Muitos anos depois, ela reapareceu num encontro casual, perto do portão de entrada da velha San Gimignano e da muvuca de gente que vinha de todo lado. Pararam um em frente ao outro e por alguns instantes nada disseram, apenas mostraram a surpresa nas feições dos seus rostos. Na pressa de passarem, algumas pessoas momentaneamente bloqueavam seus olhos. Mas era o mesmo olhar que conhecera, sem o brilho. Por mais diferente que o corpo dela fora transformado pelos anos, os belos olhos eram os mesmos. Inconfundíveis como seus próprios. Sentaram numa cafeteria, mas as palavras não abandonavam suas bocas como antes. Tinham dificuldade em mostrar os caminhos percorridos, os infortúnios passados, os segredos revelados. Os dizeres estavam mais atrelados ao presente, que não era comungado, e eles perceberam que eram outras pessoas. Mais amargas e solitárias pela decisão que já se perdeu na esperança de negá-la.  Não eram aqueles amantes, e nem mais seriam.

Ele acorda e percebe que sonhara com fatos reais. Ou talvez apenas pensara, num estado de dormência. O sono da idade sempre confunde pensar com sonhar. Caminhou até a janela para contemplar as pessoas que passam na rua. Talvez, no mais íntimo e escondido dos seus desejos, ele novamente gostaria de vê-la passar. Uma última vez. Para um último suspiro e um último adeus. Seria tudo que lhe resta possuir dela.

São Jorge - Saint George

  Imagem gerada pelo Midjourney São Jorge! Mostraste a coragem misericordiosa que me livrou do dragão que sempre carreguei em meu coração. I...