Há um vazio na rua. Talvez pelo frio matinal ou por ser um feriado. Algo assim. Decerto ele não sabe, porque todos os dias são iguais. Como todas as suas roupas são iguais, os móveis são sempre os mesmos, aquela rua, aquela sala e aquela cadeira, que o convida para sentar. Ele abandona a claridade, senta e acende um fósforo.
Na chama tênue e trepidante da vela sobre a mesa, que aquece aquele rosto próximo e uma combinação de memória, fatos ou factoides, saudade e tristeza, ele vagarosamente adormece. Alguns instantes se passam no vazio da sala e da mente. O cansaço abate fortemente aquele corpo desgastado pela dureza da vida e pela aspereza das pessoas que transitaram pelo seu passado. Deita lentamente o braço que segurava a cabeça e a encosta na madeira suja, engordurada por restos de refeições negligenciados. Parece que dorme, parece uma criança encolhida entre a cadeira e a mesa.
Ele desperta num tempo onde ela aceitou caminhar ao seu lado. Com um sorriso revelador de felicidade, um tanto malicioso, um tanto contido. O sim percorreu seu corpo e estampou evidências de obsequiosidade. Os tempos idos assim pediam e ele a cortejou como se mandava nos protocolos. Escreveu poesias apaixonadas, cantou serestas na sua janela, deu as mãos para amparar o caminhar de uma moça esperançosa, de traços delicados, que retribuía seus carinhos com o brilho nos olhos. Parecia que a eternidade brincava com seus desejos ao se flertarem com promessas perpétuas de companhia. E assim queriam até que ela desapareceu da sacada da casa onde sempre o esperava. Ela foi embora com suas promessas.
Quis o destino apartá-los. Ou eles mesmos consentiram as trapaças armadas pelas situações. Um dia, eles estavam apaixonados, noutro aquiescidos. Os parques por onde caminhavam não mais envolviam seus corpos no frescor do orvalho. Bem como o quarto não mais escondia seus arroubos. Então, os dias se estendiam no calendário como um varal sem roupas, sem cores pendidas para o futuro. Às vezes ele esticava a mão, talvez para atravessar uma rua, mas o calor daquela pele suave não o retribuía. Olhava para o lado e a falta dela fazia-o alucinar. Não suportava a ausência imposta daquela pessoa que amava, com toda a força de um coração que fora tão romântico, tão dela.
Não sobrou nenhum memento para ele lembrar. A foto, que guardava com tanto carinho na carteira, foi levada sem intenção em algum troco. O beijo no guardanapo se perdeu em algum lugar. A voz, o cheiro e o carinho foram com ela. O tempo fugidio e as décadas ficaram com ele.
Até que muitos anos depois, ela reapareceu num encontro casual, perto do portão de entrada da velha San Gimignano e da muvuca de gente que vinha de todo lado. Pararam um em frente ao outro e por alguns instantes nada disseram, apenas mostraram a surpresa nas feições dos seus rostos. Na pressa de passarem, algumas pessoas momentaneamente bloqueavam seus olhos. Mas era o mesmo olhar que conhecera, sem o brilho. Por mais diferente que o corpo dela fora transformado pelos anos, os belos olhos eram os mesmos. Inconfundíveis como seus próprios. Sentaram numa cafeteria, mas as palavras não abandonavam suas bocas como antes. Tinham dificuldade em mostrar os caminhos percorridos, os infortúnios passados, os segredos revelados. Os dizeres estavam mais atrelados ao presente, que não era comungado, e eles perceberam que eram outras pessoas. Mais amargas e solitárias pela decisão que já se perdeu na esperança de negá-la. Não eram aqueles amantes, e nem mais seriam.
Subitamente, a ameaça do corpo cair no chão o acorda. Ele percebe que sonhara com fatos reais. Ou talvez apenas pensara, num estado de dormência. O sono da idade sempre confunde pensar com sonhar. Levantou-se e caminhou até a janela para contemplar as pessoas que começavam a passar na rua. Um senhor com um sobretudo preto, grisalho e de bengalas. Logo após um casal e gargalhadas andavam errantes, para lá e para cá na calçada. A garota ainda olhou para ele quando passou em frente a janela. Algumas pessoas acenavam, a maioria ignorava. Mas ele ficou ali, imóvel e mudo por algumas horas. Talvez, no mais íntimo e escondido dos seus desejos, ele novamente gostaria de vê-la passar. Uma última vez. Para um último suspiro e um último adeus. Seria tudo que lhe resta possuir dela.