segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Onde está a poesia? (Parte II)


Pablo Neruda! Não seria elegante chamá-lo de um menestrel das ideias românticas porque a dimensão da sua criação vai muito além disto. “São mais tristes os molhes quando atraca a tarde”! É uma pena que o encanto dos versos vindouros se perdeu com o seu falecimento. É verdade que o declamar ritmado das suas poesias decreta uma solidão tão imensa, que a vontade de continuar a lê-lo não acaba mais, no retiro de palavras que te levam para dentro do íntimo romântico, da necessidade de comungar o amor. Eu me lembro da primeira vez que ouvi a citação do nome do poeta, através da música “Trocando em Miúdos” do Chico Buarque (“devolva o Neruda que você me tomou, e nunca leu”). Quem é Neruda? Perguntava-me. Conheci-o através de uma canção desesperada um pouco tarde na minha vida, é claro. O que é de se estranhar, para as pessoas que hoje me conhecem. A pergunta que imagino fazerem nas minhas costas é como alguém que tanto aprecia poesia não leu Neruda mais cedo? Bem! Há explicações, como há momentos na vida em que largamos um assunto e, depois de passados muitos anos, nem bem entendemos as razões. Depois de São Paulo eu fui morar numa pequena cidade do interior do Estado. Não muito distante para o meu padrão de hoje, mas longe demais para aquela década de 80. Isto é, era inviável viajar até São Paulo para visitar a Biblioteca Municipal da Celso Garcia. A da cidade era mais apropriadamente classificada como medíocre. Livros velhos, empoeirados, doados. Folhas rasgadas ou faltantes, assuntos que dependiam mais do gosto de nobres almas, que enchiam as prateleiras e seus sensos de dever cumprido com doações culturais. Esta foi e é a situação da maioria das cidades brasileiras. E para entender a gênese desta característica comum, basta entrar numa Saraiva para perceber que o lugar mais cheio é o das revistas. Temos uma cultura de bancas de jornal, não de livrarias ou bibliotecas. Naquela pequena cidade Neruda nunca perfilou entre o Patativa do Assaré e a culinária da Dona Benta. Mas eu também nunca fui ao seu encontro em prateleiras alheias. Era uma época de definir o que eu queria para o futuro, e a escrita não estava nas minhas cogitações. Eu gostava de matemática!

De qualquer maneira, trinta anos se passaram. Se fosse possível hibernar desde a década de 80, um cidadão feito um urso citadino perceberia alterações profundas na sociedade, no uso da tecnologia e no comportamento das pessoas. A primeira coisa que acharia insólita, se não assustasse os transeuntes com a falta de banhos, seria que todas as pessoas ficam concentradas num pequeno dispositivo, parecido com uma carteira. Telinhas coloridas, barulhos estranhos, fios que saem da caixinha e entram nas orelhas. Ninguém olha para frente, baixam a cabeça e dedilham freneticamente desenhos que não compreende. Na televisão grande e fina, poderá notar que nas tardes de domingo não existe somente o Sílvio Santos, há uma infinidade de canais.

- Ufa! - O Sílvio ainda está lá. A macarronada com almôndegas também engorda os que sentam à mesa.

E ele continua com os cabelos pretos e a mesma risada. Parece embalsamado naquele anúncio tácito de que o fim de semana está perto do fim. Ainda se pode sentir a mesma angústia do prenúncio da segunda-feira, fato que nada mudou nestas décadas. Entretanto, mesmo com a constatação de que nem tudo se descaracterizou, algo incomoda o fictício hibernante. Umas pequenas caixas, algumas com uns dois quilos, outras ainda menores, se espalham pelas casas e escritórios. Parece que o mundo está inundado de computadores, tablets e smartphones. Tudo gira em torno deles. Trabalho e lazer. As pessoas conversam pelo Facebook, Whatsapp, Twitter, Skype. Algo que faz o filme 1984 parecer ingenuidade negativa. Se o Big Brother existe, conforme concebido por Orwell, ele vende carros da Fiat e esponjas de aço da Assolan. Porém, as pessoas escrevem o que sempre falaram desde que se juntaram em sociedade, assuntos triviais do cotidiano. Fofocas, falsidades verdadeiras, futebol, filosofia de botequim, frases de autoajuda e eventualmente algo relevante. É claro que é necessário empurrar a propaganda para o lado ou apertar um “x” devidamente escondido para excluí-la do primeiro plano. Ela, alma encarnada nas televisões de outrora, achou outra área para estender sua influência. Afinal de contas, é sempre o merchandising que tudo movimenta, que tudo justifica e, principalmente, que tudo paga.  E obviamente vai empurrar tela abaixo o que mais interessante for para seus propósitos, numa espécie de competição de todas as agências por atenção, o que demanda criatividade e perseverança dos produtores de conteúdos já transmudados em profissionais. Empacota-se uma música, preferencialmente aquela que pode ser ouvida sem muita atenção, que apenas faz chacoalhar o pé. Junta-se um rápido vídeo, que agora chamam de clip, e pagam para os mecanismos de busca colocarem na frente de outras pesquisas. A coisa toda ficou meio dissimulada, o que é muito sinistro.

De qualquer maneira, onde está a poesia?

No mesmo Youtube em que se pode assistir um rol de porcarias, como cantores que procuram imitar bodes em duplas, flagrantes irrelevantes do cotidiano como acidentes, também se pode achar a poesia do Neruda. Bem como a da Florbela Espanca, Fernando Pessoa e até do Tomas Tranströmer, último poeta agraciado com um Nobel.  É certo que o poema "The Blue House", declamado por Louise Korthals, tinha “imensas” 36 curtidas no momento em que escrevia este parágrafo (a 36ª foi minha), o que ironicamente mostra a irrelevância de um poeta neste sistema. Mas ele está lá. Em outra rápida pesquisa, sem muitos critérios, encontrei belas poesias em canções feitas por grupo chamado “Pouca Vogal”. Desta forma, eu acredito que ainda existam vastas belezas por serem descobertas e apreciadas, como eu também penso que o hibernante terá dificuldades de encontrá-las pelo simples fatos de não estarem em evidência. Nelson Rodrigues certa vez escreveu: “antigamente, o silêncio era dos imbecis; hoje, são os melhores que emudecem. O grito, a ênfase, o gesto, o punho cerrado, estão com os idiotas de ambos os sexos”. Nada mais atual do que esta frase, e nada é mais verdadeiro para perceber que devemos procurar no silêncio as belezas estéticas que tocam mais o íntimo do que a exposição despropositada de pernas e sexos. O sujeito que foi tirado da sociedade por tantas décadas faria o que ele fazia no momento de início da sonolência: conversaria com outras pessoas afins nos gostos. As cafeterias ainda existem, bancos de praças também. Basta conversar para descobrirmos as chaves de pesquisas na Internet. A junção das técnicas antigas com as novas é que é poderosa.

Ah! Então a poesia está aí?

Não!

(continua)

São Jorge - Saint George

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