sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Madrugada de Domingo


Logo mais estará claro. O sol varrerá as sombras já esvaecidas dos objetos. O silêncio da avançada madrugada será barulhado por ruídos tilintantes de coisas que se livram do frio, mesmo que não tão intenso. Não haverá cantos de galos porque não há mais quintais na cidade acinzentada. Haverá apenas insistentes pios de pardais dentro das esquecidas árvores e sobre os varais de fios que levam a modernidade para dentro das residências. Depois virão os carros e os ônibus, aumentando o volume para estrondos de civilização.

Mas, por enquanto, estou só com as ruas desertas e mal iluminadas pelas esparsas lâmpadas. Às vezes, um cachorro protegido por grades assusta meu caminhar. Às vezes, vultos fazem minha fisionomia verter seriedade, para depois se aliviar ao constatar os bêbados de fim de noite. Desatinados e largados no meio-fio, acompanhados ou não de garrafas vazias.  Ou acompanhados da mesma solidão que se avulta pelo negrume do céu. A solidão esconde os horizontes, os futuros e o destino da mesma forma que o negro da escuridão. E da mesma forma que a vida baldia, que está espalhada entre a calçada e a rua, eu bebo a solidão pelo gargalo e abandono meu ânimo pela vida mal iluminada. Com as mesmas roupas amarrotadas e desarrumadas, visto a infelicidade maltrapilha.

Porém, ao se olhar melhor para um deles, percebo o branco de uma camisa fina, além de uma garrafa de Stolichnaya ao lado com pelo menos um gole dentro, quase a se derramar no chão. Suspeito que não estou diante de alguém da arraia-miúda.  O que me leva a pensar que a miséria da mente conduz a alma para alguma forma de mendicância. Não lhe darei uma moeda porque ele não precisa, nem posso dar minha complacência porque eu não preciso. Os caminhos nos levam para lugares distintos e aquele corpo é apenas mais um diante de tantos que cruzo. Mantenho meus passos, mesmo quando eles me levam para um rumo incerto. Não há tanta benevolência franciscana na minha vida para parar por alguns minutos. De qualquer maneira, ele não me parece acordado. Creio que a sua vista apenas procura a escuridão atrás de mim para esquecer que tem um mundo ao seu redor. Assim, ignorando-o, sigo em frente.

Atravessei as ruas por diversas vezes. Às vezes me sentia bem do lado ímpar das casas. Às vezes isto me incomodava e eu perfilava com os pares. Não me perguntem as razões para isto. Na falta do que fazer crio todas as formas de motivo, como aquele que me levou a sair do bar e caminhar quase 15 quilômetros até a minha casa. Percebo que há poucos carros estacionados e disponíveis para serem roubados. Não que eu intencione fazê-lo, mas não somente a minha vida desabou: tudo parece desmoronar nestes tempos sombrios. Caminhar pela madrugada e estacionar carro na rua são coisas para loucos.

É verão e não há orvalho para brilhar nos primeiros raios de sol. É uma pena porque gosto de ver a umidade avançar pelas paredes para depois lentamente secar. Parece um movimento que dança com o sol e dá vida a estes muros desbotados. De qualquer maneira, são quase cinco horas e eu verei apenas as construções se acederem mais. Verei o marrom dos telhados das poucas casas e o cinza das grades clarearem. Parece que o preto dos portões também clareia. Logo ouvirei os ruídos, verei as pessoas. Estas decerto um pouco mais tarde, porque é domingo e elas desfilam suas preguiças matutinas em casa, devidamente autorizadas pelo calendário. Verei os vira-latas que latiam no meu caminho. Os dependentes de crack a saírem dos seus pacotes noturnos. Os bêbados tropeçando em si mesmo a caminhar para seus lares, quando houver um para irem. Verei a portaria do meu prédio e ninguém a me esperar.

Não me verei porque não se vê o que não se compartilha. É pelo foco da paixão que nos percebemos.

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