domingo, 18 de outubro de 2015

Arwen

Gerada pelo DALL-E

Ela apareceu quando menos esperava. Na ocasião, os dias se alternavam como em ondas de esforços e lassidão. Torneavam os sonhos em coisas ensimesmadas, como se o impossível fosse a regra do desejo e tal desejo se enjaulasse dentro da pele. Ela surgiu no vazio das ambições cansadas de ilusões. Na herança de uma querença mesquinha, imposta por não sei o que. Talvez apenas por navegar pelos ventos soprados pelo egoísmo. Talvez apenas por viver uma vida em si, cheia de refugos dos outros ou de mim mesmo. Ela nasceu na minha morte, nas cinzas do meu desejo e no óbito do meu querer.

sábado, 29 de agosto de 2015

Fatos

Justine Dieuhl - Toulouse-Lautrec - Museu D'Orsay - Paris (foto do autor - 2008)

Eu quero me lembrar do teu rosto,
Já tão apagado pela espera destes anos.
Eras uma menina dentro de um corpo de mulher,
É o que me recordo.
Caminhavas com passos delicados,
E pisoteavas matreira a minha sombra.
Abrias um sorriso travesso,
Tão indócil que suas formas
São as que mais firmes estão no meu pensamento.

Eu quero despi-la de qualquer desgosto,
Que porventura fosse criado pela minha conduta.
A mágoa dos fatos mancha o eterno.
E o futuro se bifurca na indolência
É o que está na minha memória:
Um rosto e um sorriso
Enevoados pelo tempo e pelo remorso.
Uma mulher que perdeu a menina,
E passos que a levaram.

Quero fugir do que me foi imposto,
Já tão estampado quanto uma tatuagem.
Eras uma mulher dentro de uma menina.
É o que ficou nas minhas alucinações.
Corrias com passos acelerados,
Para escapar das minhas sobras.
Fechavas aquele sorriso moleque,
E emprestavas formas tristes ao rosto
Que lacrimejava teu abatimento.

Eu quero vesti-la com o meu gosto,
Que a presentearia após esta minha luta.
A certeza dos fatos a aqueceria no inverno
E o futuro convergiria na tua clemência.
Tu sairias da minha memória:
Um corpo e uma mulher,
Resgatados do tempo e do arrependimento.
Uma pessoa que ganhou a menina,
E passos que a trouxeram.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Olhos


Olhos! Também tenho olhos. Registro que tenho dois em bom estado de funcionamento, que veem o mundo sobre vários prismas, alguns até além da tão desejada simplicidade. Em alguns momentos, ser simples me dá tédio, em outros eu gosto. Havia (ou há) uma música do Raul Seixas que aclamava: “eu prefiro ser esta metamorfose ambulante do que ter aquelas velhas opiniões formadas sobre tudo”. Alma irrequieta? Decerto. Sonhador? Talvez... não. Não sonho mais, não durmo mais. E antes que se pense em aspectos vampirescos, eu digo que estou apenas desperto, observando, vendo pessoas passarem com suas vaidades na passarela. Corpos objetos de uma sociedade que abriga e rechaça. Vejo-as e não as desejo. Porém, algumas vezes, uma delas sai da linha e apresenta um comportamento inusitado. A máscara cai e ela se revela. São estes momentos que eu espreito. São aquelas ocasiões que displicente ou involuntariamente o ser desmura todo um mecanismo de obliteração do coração. É claro que eu poderia furar qualquer muro com a retórica da paixão. Ei! É uma analogia boa: eu criaria um buraco com as artimanhas do meu coração, mas o muro ainda estaria lá. Não conseguiria ver tudo, nem ao menos a dimensão do que tem do outro lado. Ao passo que se uma pessoa me atira o tijolo do seu muro, eu sei que ela quer ajuda para derrubá-lo. Então eu a olho, com uma mirada terna. Digo com a minha visão que sou da paz. Quero tudo derrubar, mas com consentimento.

Jaz no meu passado a angústia do tempo. Aquilo que tudo impulsiona, que tudo motiva pela insanidade da urgência. Desta forma, posso ser livre, como somente uma alma desperta pode ser. Já não mais sonho, pois estou acordado para o destino. Ele não mais me carrega, apenas me empurra.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

A Trilha

By böhringer friedrich (Own work) [CC BY-SA 2.5 (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.5)], via Wikimedia Commons

A trilha leva os meus passos e há algo de indolente que se esvai pelo caminho. Diria que é o meu corpo, rechaçado do convívio por um absoluto e imenso cansaço. Diria que é o meu ânimo, alquebrado pelas frustrações eternas, por aquela mulher que varreu todos os vestígios de felicidade. Um passo após o outro e a terra não me consome, mas as lembranças que vertem pelas lágrimas assolam a paisagem. Ela está lá estática e muda. Uma imagem de um rosto claro, com seus olhos cor de mel, a disputar matizes com o pôr do sol no infindo horizonte do destino. Inalcançável pelas lamúrias, pelas súplicas de paixão que um dia foram ignoradas. Um passo após o outro. Não me importa mais para onde ir ou onde chegarei. Qualquer lugar é qualquer lugar. Não haverá remanso e não haverá paz que afaste esta tormenta de não mais vê-la, a não ser pelas miragens que zombam pelo cotidiano.

Há algo de eterno no meu passado. Os passos caminham por si só, como se ignorassem a minha vontade de me perder. Não há mais um futuro para se sonhar, não há mais um objetivo por que lutar. Apenas um caminho do qual não se pode desviar. O abrigo para esquecer do mundo, é o próprio caminhar.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

A Carta de Moriarty



“For a long while now I’ve suspected that connection with another person, real connection, simply isn’t possible. I’m curious if you disagree, although I suspect you feel as I do in this, as you do in so many other things. So tell me; is it possible to truly know another person? Is it even a worthwhile pursuit?

Yours is the only opinion I’ll trust, the only point of view that holds even the faintest interest. I find my diversions, as I always do, but the days are long in this grey place.

I dearly hope you’ll write soon.

Ever yours, Jamie Moriarty”

Em toda a minha história, não há elementos que me permitam dizer que uma conexão real com alguém é possível, pelo menos não de forma perene. Há momentos que estamos profundamente ligados, feitos magnetos que quanto mais próximos, mais a atração nos compele para os braços e para os desejos insanos de usurpar a vida do outro como a nossa própria. Talvez a chave para compreendermos a conexão esteja exatamente neste quesito: o tempo. Não estou falando do eterno ou do etéreo, não estou aqui para prognosticar que a felicidade depende de um vínculo que nem ao menos conseguimos compreender. Mas pense: quando os anos avançam, o que sobra na lembrança? Talvez uma imagem dos tempos infantis e juvenis, mas eu me envergonho das experiências daqueles anos que se foram. Nem aquelas músicas que balançavam nossos corpos têm mais graça. Sinceramente eu me lembro do rosto do meu filho, recém-nascido e surpreendido no elevador a caminho do quarto.  Porém eu acredito que o espanto talvez tenha dado uma dimensão maior para aquele instante, estampando-o como tatuagem na minha memória. O que definitivamente eu me recordo era a imagem de te ver pintando no ateliê. O chão sujo pelas cores derramadas, imagens mal começadas em algumas telas, e o teu rosto lentamente virando para o meu lado. Era um quadro dentro de outro que você pintava. Inicialmente a pele macia das tuas bochechas. Logo o vermelho suave dos lábios começa a aparecer, os cílios, a mão que segurava o pincel e permanecia estática a poucos centímetros da tela. Por fim, seus olhos brilhantes me perceberam, e um sorriso se iniciou no rosto. Um sorriso que nenhuma palavra pode conter.

Quanto tempo durou? Um, dois ou três segundos? Ou todos os anos desde que te vi naquele momento, naquele lugar? Aquela conexão ainda me persegue. Mesmo quando estou só ou acompanhado de outros braços.

(https://www.youtube.com/watch?v=uztaIJBUrcc)

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Intocável


Um mendigo olhou profundamente nos meus olhos como se suplicando por uma mísera esmola, por uma mísera chance de lá continuar estatelado perto do meio-fio, alojado na penúria deste seu cotidiano. Olhou-me profundamente com ares de desespero, como se a vida dele dependesse daquele momento. A barba com uma suspeição de grisalha (o tempo a metamorfoseou num emaranhado amarronzado de fios) e o rosto vincado transformavam ainda mais a sua fisionomia triste, emprestando aspectos fúnebres à sua indigência. Uma espécie de estado de quase morte, que comprazia com o que supunha ser seu martírio.  Cortejava-me com o seu olhar, a sua expressão, e uma mão que se levantava daquela mistura de trapos e corpo. Não reagi e nem esbocei nenhum movimento, apenas mantive uma impavidez calculada. Não tinha nenhuma razão para ficar ali, mas também não tinha nada a minha espera. Nada que motivasse os meus passos.

Por alguns segundos ele hesitou, mas por fim abaixou o braço e continuou a me olhar. Talvez ainda mais profundamente, mas tirou qualquer resquício de aflição do semblante e passou a me observar com a frieza de um necrologista. Havia agora dois inanimados, um em frente ao outro. Ele saiu daquele personagem da rua e mostrou algo de humano, algo que transforma qualquer impressão que se tenha sobre miséria e as pessoas que vivem nela. Seria apenas um desprovimento? Aquela vida posta no meu caminho tem seus protocolos e princípios, que a orientam pelos dias. Provavelmente são diferentes dos meus. Não sei exatamente o quanto somos distintos. Certamente nos destinos, claramente nas ambições e, de forma obscura, não tenho certeza se o somos nas intenções. Não sei quem é ele, e nunca saberei. Ele não passa de um intocável, tanto pelas minhas mãos, quanto pela minha imaginação.

O sol a pino continuava a fustigar o cimento esbranquiçado da calçada, mas não retirava nenhum suor daquele rosto envelhecido, talvez menos idoso do que aparenta, talvez mais idoso do que mereceria. Naquele impasse de olhares, por um quase imperceptível movimento da boca, percebi que ele iria falar. Enfaticamente, com uma voz firme, eu disse:

- Não!

E pausadamente continuei:

- Não diga nada.

Pus a mão no bolso, peguei a carteira e percebi que não tinha nenhuma nota pequena. Retirei uma de R$ 50,00 e a dei para ele, com o devido cuidado para evitar que nossos dedos se tocassem. Aquilo o alimentaria por alguns dias, se é que este seria o uso do dinheiro. Ele sorriu e inclinou ligeiramente a cabeça numa forma de agradecimento, ou por um tempo que parecesse mais gratidão do que submissão. Nada disse então, apenas virei o corpo e caminhei pela mesma calçada com passos nem tão rápidos, nem tão lentos. Logo um casal de mãos dadas passou por mim, entretidos por uma conversa recheada de sorrisos. Depois veio uma mulher gorda, com cabelos bem longos, presos por uma espécie de elástico, inclinada para o lado devido ao esforço que tinha para quase arrastar uma sacola pesada (suponho), feita com um tecido forte, emborrachado, e com bolas vermelhas sobre um fundo branco. Não combinava com o vestido marrom dela. Ela não me olhou, nem a bela morena que rapidamente atravessou a rua. O único olhar que entrecruzou com o meu naquela manhã foi o do mendigo. Mas, quem era o mendigo?

Ainda ontem eu a olhei, com o pesar profundo da separação e olhos marejados por uma tristeza que queria irromper do meu peito. Calei na mente as palavras: Não! Não vá embora! Esperava dizê-las com o meu olhar, como uma súplica eterna, uma voz tardia que deveria assombrar sua decisão por uma mísera chance de permanecer naquele mundo, mais imaginado do que efetivamente criado, que eram nossas vidas. Por alguns instantes ela hesitou, mas virou as costas determinada, e se foi. Não havia razões pelas quais ela ficaria perto daquele corpo. O mesmo que a aquecia no frio e no calor da paixão, era agora também intocável. Tanto por ela, quanto por mim. A minhas palavras ficaram mais melancólicas, e o meu olhar tão inexpressivo quanto o de um cruel assassino. Os sorrisos se rareavam pelo cotidiano e a mente, outrora tão brilhante e criativa, se prendia no vazio da frustração. O que ela deixou não passa de um trapo e um corpo, que apenas sobrevive pelos intermináveis dias. Ou talvez não sobreviva, se aquele ônibus que rapidamente se aproxima, não conseguir frear.

(ficção)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Solidão.

"Asylbewerber03" by Andreas Bohnenstengel - http://andreasbohnenstengelarchiv.de/categories.php?cat_id=178. Licensed under CC BY-SA 3.0 via Wikimedia Commons - http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Asylbewerber03.jpg#mediaviewer/File:Asylbewerber03.jpg

Um olhar passeia pelo quarto vazio e percebe os mesmos móveis, que me acompanham há tantos anos. São as mesmas cores, os mesmos traços, os mesmos quadros. Parece que este que sou também me acompanha há muito tempo. Sou eu mesmo, sem nada a mais de relevante na personalidade, sem nada a menos porque não há muito o que perder. São as mesmas palavras, mas estão mais caladas, mais difíceis de encontrarem a liberdade para fora da boca; para fora do coração. Traduzem apenas um vasto silêncio que se estende até onde minha percepção investiga. Não há mais rastros daquela que por aqui passou. Os vestígios de alguém, que denunciariam talvez uma paixão, ou aquela incerteza confusa de sentimentos que constrói uma saudade, por ínfima que seja, já não podem mais ser vistos ou pressentidos. Decerto há um buraco no coração, há um buraco na vida e houve uma luz que se apagou para escurecer o meu cotidiano. A vida é realmente estranha. Nascemos sozinhos e passamos boa parte dela com nossos pais. Convivências distantes, que de certa forma se alheiam do processo de amadurecimento. Aí vem os amigos, que tagarelam, gracejam e zombam de tudo que pode ser colocado ou pensado nos dias. Vive-se como se com eles fôssemos herdar a eternidade. Depois ela aparece, rouba-te toda a significação da vida e te despoja de qualquer ambição que se possa caracterizar como própria. Entrega alguma coisa, de fato, mas logo leva tudo consigo. Por fim, novamente somos meninos, com a presença de alguém aqui e ali, cada vez mais rara, e sempre alheada do que você é. A única diferença é que há menos vozes, menos entusiasmo e menos vida.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Infante!

Por Credits: Pierre Holtz / UNICEF CAR / hdptcar.net at hdptcar [CC BY-SA 2.0 (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0)], undefined

Você quer dizer que sou um menino ou um soldado? Ou ambos? Se assim for, não tenho muito a dizer além de que não há nada mais perigoso do que um soldado-menino. A guerra não é uma brincadeira que pode ser levada com graça, como se estivesse numa roda de amigos e sugerisse: - vamos matar alguns bandidos? Tiros de fantasia que são disparados mais por aqueles hormônios que começam a ferver no sangue, do que por uma intenção malévola. Na realidade, se um tiro carregar uma vida para a morte, o arrependimento enterrará a consciência. O menino chafurdará toda a sua existência porvir na lama e no esgoto da compunção que cobrirá sua vida. Se sua mão tremulante tomar um rifle para que olhos ameninados vasculhem o que tombar, não será uma escolha digna de combate. Esta instância última de defesa ou ataque, campo de medidas extremas, desapego da vida, negação da humanidade, não combinam com o que aqueles poucos anos testemunharam. Mas há casos que crianças são vetustas nas desgraças. Quando o entorno respira e transpira violência e a infância é deformada pela crueldade. Nestes casos eu não seria um soldado-menino porque eu nunca teria sido um menino. Teria apenas vivido uma vida de velho, de vontade decrépita e sonhos que nunca nasceram.

Como? Menino-soldado? Nem pensar porque não é somente uma questão de ter insciência do que for feito, nem um desvio precoce de destino: é a própria antítese da infância. Rouba-se tudo: seu tempo, sua vida, seus familiares. Tudo que é estruturante, tudo que possibilitaria fornecer solidez aos seus sonhos. Entrega-lhe uma arma e uma crença, nada mais. Como tudo isto que vemos ao nosso redor, às vezes transvestido de ideologia, às vezes chama-se de fé, mas no fundo são conceitos manipulados por aqueles que se dizem sábios, que dizem guardar o repositório de conhecimentos difusos, cujas malhas de ligação de ideias são por vezes tão complexa que qualquer afirmação pode ulular delas. Qualquer mesmo! O que inclui aquelas de se criar inimigos (alguns dirão diabos, demônios, tinhosos, imperialismos e assim por diante), de se amplificar problemas, de turvar visões. O menino neste meio enxerga pelos olhos de outros porque nunca viu o que ele poderia ser.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Brilho nos Olhos

By Howie Le from San Jose, USA (eye full) [CC BY 2.0 (http://creativecommons.org/licenses/by/2.0)], via Wikimedia Commons

Este que está aqui aparece em palavras, que formam dizeres e tentam montar imagens em teu coração. São palavras que denunciam estes olhos que marejam, enquanto busco nos significados rastreados pela semântica, os significados da existência. São elementos que se equilibram entre a escuridão e a luz. E se me deixei levar pela luz para o mais longe que os meus dons permitem, o outro lado estava imerso no mais longe que a escuridão pode me prover. Onde encontrei o que há de mais obscuro na minha realidade e destino. Eu sempre me senti assim ao vagar pelos conhecimentos que a minha sede de curiosidade investigava. Eu sempre me senti assim ao abraçar as minhas obras e abandonar minha vida. Harmonia não é algo fácil quando se lida com extremos, e quem pode me trazer para a claridade é aquela que caminha mansa pela minha vida. Esquecerei os vestígios de discursos que te sugerem a inutilidade do cotidiano, e induzem um cansaço perene numa alma rodeada de sonhos. As palavras lançam meus sentidos na peregrinação de encontrar a paz do colo desta mulher. Cheirar aquela pele sedutora na procura de uma fragrância que desperte o desejo. Percorrê-la com o toque que avança pelas indiscrições veladas que a prudência contém, depondo as vestes e os receios de deitá-la no sempre. Saborear os lábios e largar os sonhos de outros caminhos para se perderem, soprados pelo hálito que invade o meu espírito e aquele homem que estava escondido do ordinarismo dos dias. Ouvi-la sussurrar palavras agora revestidas de uma fêmea, que abre as portas da paixão para gritar aqueles sons represados simplesmente por não terem alguém perto o suficiente do seu coração. Olhá-la com todo o brilho que reflete um amor, que lentamente nasce acompanhado do tempo que quer virar eternidade.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Verde Insistente

Google Maps - Street View

Uma nova manhã me desperta. Bem como todas as manhãs que invadem com suas claridades a minha janela entreaberta, e picota pequenos pedaços de sol que fugiram pelas persianas até o chão do meu quarto. Em seu caminho iluminado pequenas poeiras flutuam, como os pássaros que prenunciam a manhã lá fora, uma algazarra de pios que alegram aquelas momentos  madrugadores. Junto com a preguiça de um corpo indolente pelas horas de sono, espero o despertador gritar com um barulho estridente e metálico. A fina xícara de porcelana, com decalques alemães que ilustram rosas bem detalhadas, tanto que até creio cheirá-las, me espera ao contrário na mesa da copa. A pequena colher também deita ao lado e a chaleira permanece impávida, na espera do café, cujo cheiro estará ao meu redor e me fará companhia, além de acrescentar mais um perfume nesta manhã e na pressa de sair.

A porta range e o gato malhado me olha e foge meio sem direção, apenas para longe. Alguns pássaros se assustam e ouço um aparvalhado bater de asas. Penso que surpreendi aquelas vidas que se alojaram na minha varanda e sigo em frente até ganhar a pequena calçada sob os meus pés. Uma calçada tão estreita que mal cabem duas pessoas lado a lado. Estou sozinha e sei que a única coisa que terei que fazer é esquivar das pessoas que vem em sentido contrário. Mas elas são raras porque não é a direção do metrô. Dou uma última olhada para o meu lar e para as árvores, que agora dançam com uma brisa que refresca este verão inclemente, e mostram um verde insistente, que se atreve a estar ali, que se insinua numa batalha sem fim contra o cinza asfáltico e o amarelo desbotado das casas que se perfilam até onde a distância alcança. Um verde persistente que se nega a mudar, que se recusa a fugir para lembrar que a natureza da vida está além dos pratas, brancos e pretos dos carros. Um verde que põe um cheiro de clorofila entre a fuligem dos diversos pós que flutuam sobre a cidade. Odores dos carros, das fábricas, do Tietê, dos cigarros, de borracha, de tudo que exala aquele cheiro de cidade, aquele cheiro de São Paulo.

Google Maps - Street View

Alguns passos depois, encontro a primeira alma do dia. Uma cabeça branca, que já não posso mais dizer grisalha. Os fios pretos já a abandonaram, aparentemente há muito tempo. Devido ao calor, ele veste uma camiseta sem mangas, bem vermelha, talvez para contrastar com a cidade e mostrá-lo para as pessoas que por ali passam. Ele me acompanha com o olhar até o meu caminhar passar o mais próximo possível dele. Não sei o seu nome, nem ao menos quem ele é, mas no meio daquele rosto vincado de rugas, neste momento, aparece um sorriso. O que me faz ouvir no seu silêncio: – Bom trabalho, filha! Nem sei se impressão ou realidade, de qualquer maneira o seu rosto assim me disse. Uma candura emoldurada por um pequeno barracão, pixado por aquelas letras horríveis e ininteligíveis das gangues.  Ao lado de uma mesa vermelha, com quatro cadeiras também vermelhas. Talvez logo mais ali se reúnam mais algumas cabeças branquinhas, e até grisalhas, e comentem assuntos idos de tempos idos. A cidade ainda os esconde nesta manhã.

Google Maps - Street View


Na sequência vem o borracheiro Tadeu. Como eu sei o seu nome? Não, eu nunca conversei com ele, apenas sei porque algumas vezes ele põe um cartaz: “Contrata-se borracheiro, falar com Tadeu”. Às vezes eu o vejo devorar algum sanduíche, sentado em três pneus empilhados. Outras vezes ele está montando um pneu, ou desmontando, ou testando a câmara na água suja de uma banheira antiga, também suja. Mas, na maioria das vezes ele está apenas a espera de um furo, sentado ou encostado na parede do seu minúsculo estabelecimento, que mais parece um corredor escuro do que uma borracharia. Raramente ele me olha, e mais raramente ainda ele me cumprimenta. É apenas mais um personagem que vive no meu caminho até o metrô.  Como os vendedores das lojas de roupas econômicas, ou os mecânicos daquelas oficinas de carro. Ou mesmo aqueles manobristas do estacionamento que está ao lado da estação, que guardam os carros das pessoas assustadas em enfrentar o trânsito do centro da cidade. Jovens que se divertem em passar raspando um carro pelo outro, condensando-os tanto para caberem mais. São personagens acidentais de uma cidade imensa, que me acompanham incógnitos todas as manhãs.

Google Maps - Street View

(ficção)

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Eu te amo - IV


"Roda mundo, roda-gigante. Roda-moinho, roda pião. O tempo rodou num instante. Nas voltas do meu coração"
Chico Buarque

Eu fui lançado para um mundo recriado da criação recriada de coisas que foram criadas há tempos imemoriais. Numa espécie de ciclo da fênix que morre em autocombustão e ressurge das cinzas, continuamente. Adoro o termo “on and on” do inglês: continuamente, ou ainda uma permissão para criar o “sempremente”. Permita-me? Não pude criar o “algodoar o céu” porque algodoar já está nos dicionários; e nem foi um presente de Guimarães Rosa, porque o termo existe desde 1556. Blá! Sempremente procuro por estes momentos de contemplação, em qualquer dobra de instante cotidiano. Isto alimenta a vida, insufla a vontade, combusta o desejo. Se eu sou apenas um parêntese para você, é porque as coisas ordinárias me avassalam e tornam os meus momentos insignificantes.  Quero estupeficá-la na descoberta, não de quem você é, mas do que você pode ser. Minhas palavras devem recriá-la para que não permaneçam próximas ao limbo do esquecimento. Elas devem mexê-la no inusitado sabor que está ali nos pensamentos que ainda não foram tocados pela sua compreensão. Naquelas imagens que ainda estão no parapeito em que você pode me observar. Um espelho? Talvez sim, ou talvez não. Se for, deve ser translúcido o suficiente para guardar o mistério divino do amor. Aquele que, se descoberto, desnuda apenas a paixão. Se opaco, deve sugerir algo que nunca poderia ser alcançado por estes cinco sentidos que traduzem o que nos cerca. Mas por um sexto, sétimo, nongentésimo sentido de observação oblíqua ao universo. O mesmo que remexe o coração sem uma explicação fidedigna de palavras, sem uma razão digna de explicações. Apenas mexe, remexe, balança, e leva todo o sopro da existência para a boca gritar: Eu te amo!

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Desespero


Pois bem! Rasguei todos os documentos. É pouco! Queimei todos os resquícios daquilo que dizem ser uma vida civilizada. Foi numa fogueira pequena, amarela, lá no quintal para que a fumaça enegrecida alcance a liberdade dos céus, e não encha os meus pulmões daquela fuligem insípida. A chama dançava com a brisa que conseguia vencer as paredes. Divertia-se em devorar papéis sem sentido para ela. Incendiava todos os registros de uma vida tormentosa, que fora fincada no desespero de passados cada vez mais tortuosos. Que nunca tomava a direção retilínea da felicidade. Há! Passados assados! Jocosa ironia para se libertar de tudo que enegreceu os sonhos de um jovem. Da mesma cor da fumaça arrancada daquelas folhas e plásticos. O negro que o manchou agora se espalha com o vento. Vai para lugares incertos e leva a incerteza do que fazer quando o fogo se apagar.

Mas, o que é aquilo que não se queimou? Que dizeres são estes que recusaram a virar brasa? Não é um documento, nem um diploma, nada que traga a lembrança de mim. É Hamlet? É Hamlet!

Acredito, sim, que penses o que dizes agora; mas aquilo que decidimos, não raro violamos. O propósito não passa de servo da memória, de nascer violento mas fraca validade. E que agora, como fruta verde, à árvore se agarra, mas, quando amadurecida, despenca sem chacoalho. Imprescindível é que nos esqueçamos de nos pagar a nós mesmos o que a nós é devido. Aquilo que a nós mesmos em paixão propomos, a paixão cessando, o propósito está perdido.

Toda uma vida é planejada com os auspícios da paixão. É ela o alimento da vontade, a energia da realização e a luz do caminho que ilumina os passos do espírito. Eu me apaixonei pela vida e me agarrei ao destino com a determinação inabalável da fé que tinha pela humanidade. Tinha também um coração bom e generoso, um falar pausado e manso, um jeito carinhoso de ser. E quase que toda esta ternura tocou o futuro com ares de inspiração. A mesma inspiração que, em algum momento de profunda expressão, pelas palavras e armas da paixão, fez conquistar a mais desejada das mulheres. E lá está ela na minha lembrança, na minha saudade. Bela como nunca. Vestida na minha imaginação e nua no meu desejo. Aquele caminhar pela minha vida até hoje me faz sentir o seu perfume, mesmo que ela esteja em Marte. E lá está ela de partida, pausada na porta do carro segundos antes de desaparecer. Ainda me olhou com uma expressão de cansaço ou tédio, não posso definir tão bem. Sei apenas que foi um último olhar que levou embora toda a minha paixão. E a minha vontade, a minha energia, a minha luz.

Meu propósito se perdeu e nunca mais o encontrei.

(ficção)

sábado, 24 de janeiro de 2015

Esvaziar os Armários

"1811 Kleiderschrank anagoria" by Anagoria - Own work. Licensed under CC BY 3.0 via Wikimedia Commons - http://commons.wikimedia.org/wiki/File:1811_Kleiderschrank_anagoria.JPG#mediaviewer/File:1811_Kleiderschrank_anagoria.JPG

Tinha o passado colecionado em fragmentos no armário das minhas lembranças. Peças que não se encaixavam na montagem de uma vida que, por vezes, foi baldia, e por vezes foi arrazoada pelas trilhas herdadas pela necessidade. De cada época guardava um pedaço de quem fui. Da adolescência veio um pequeno caderno azul de poesias, que contava e lamentava as incertezas que se deitavam no futuro. Tinha olhares fugidios, que a olhavam como uma musa inatingível, no véu das convicções amorosas que ainda não se firmaram no coração. Adorava-a como a um ícone e construía reinos na imaginação de uma vida possível apenas nos delírios de paixão. Sua voz não tinha sons, seus olhares eram frios como o de animais. Seu corpo era tenro e branco, com longos cabelos que deslizavam pelas costas desnudas. Seu toque era insensível e o seu não corroeu as entranhas do meu desejo por muito tempo.

Aquele não me levou para um sim incerto. E no final desta nova época eu tinha no armário os diplomas e certificados que não foram enfileirados na parede, uma casa imensa, carros e vários elementos e resquícios da imensa tristeza de estar ao lado de uma estranha. Um quadro de parede que eu não gostava; uma jarra decorativa que nada me trazia, além de eventualmente água fresca. Havia palavras que nem esbarravam no que eu era e eram repetidas como um macaco hidráulico na eternidade da existência. Não tinha cartas apaixonadas, guardanapos de jantares românticos, fotografia de beijos e estas travessuras que fazemos na torpe do encantamento. Não havia nada no meu peito e eu decidi não somente esvaziar os armários, mas também não ter mais armários.

Atravessei anos ao lado de pessoas passageiras. Quando alguma coisa, ali jogada na mesa ou na minha vida, pedia armário, eu lhe dava o lixo. Quando alguma palavra tentava entrar no meu íntimo, eu a expulsava. Quando alguma lembrança tentava se tatuar na minha vida, eu a esquecia. Conheci uma paixão que, do mesmo jeito que veio, se foi para além dos domínios da fascinação.  Conheci mais amigas que se deitavam, do que uma alma que pudesse gritar comigo pelos guetos que nos separam filosoficamente da multidão. Talvez ela (enfaticamente “ela”) não apareceu porque eu não lhe dei tempo, nem espaço, nem chances para mostrar seu olhar de menina. Talvez ela ainda não apareceu porque eu não lhe dei um armário para guardar seus vestígios de mulher.

(ficção)


quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O Muro

"Brickwall" by Arnold Paul - Own work (selbst erstelltes Foto). Licensed under CC BY-SA 2.5 via Wikimedia Commons - http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Brickwall.jpg#mediaviewer/File:Brickwall.jpg

Não sei se alguém que me lê viu, ou se emocionou até as lágrimas, com o filme “The Wall” do Pink Floyd. No final do filme existe uma animação que, no disco, diz respeito à canção “The Trial”. É o julgamento final da vida do protagonista Pink, mas um julgamento que não sabemos se diz respeito a uma autocensura, ou à decretação de não adequabilidade às convenções sociais. Na música de maior sucesso (“Another Brick In The Wall, pt. 1”) Pink já havia sido castigado e humilhado por “escrever um livro de poesias”. Agora, em “The Trial”, o desfecho se aproximava com o juiz, numa voz horripilante, decretando:

Was caught red-handed showing feelings,
showing feelings of an almost human nature.
This will not do

No final do julgamento ele é condenado, mas o muro que o isola neste lado da humanidade (com seus egoísmos, vaidade e louvação ao dinheiro) explode. Atrás dele, um mundo em ruínas, como após um bombardeio, mostra crianças brincando sobre escombros. Uma música quase que assobiada passa um sentimento de paz profunda, de harmonia, do regresso aos enternecimentos que nortearam o início da nossa jornada que se chama vida! Estaremos aqui por poucas dezenas de anos, e estaremos mais preocupados em garantir a próxima dezena do que fazer algo significativo para a existência da humanidade. Obviamente, de acordo com as regulações advindas de sistemas como a moral e ética (às vezes estabelecidos em bases preconceituosas) podemos até contribuir indiretamente, desde que princípios básicos de convivência social e fraternidade sejam efetivamente levados a cabo. Porém, há inteligência que se incomoda com as outras questões. E muito! Talvez se crie os muros e as muralhas que protejam aquele íntimo sensível e empático. O problema é que o mundo avassala de uma forma como nunca antes vista na história, com uma rapidez estúpida face às etapas de aquisição psicológica do novo. Tudo comandado em nome da tecnologia e da sociedade da informação. De fato, há um oceano de informações a nossa disposição, com dois centímetros de profundidade. E tudo invade como enchente o teu cotidiano. Hoje eu tenho a impressão que 1984 do Orwell foi apenas adiado para daqui a pouco. Entretanto, o meu coração está em paz, o que conflita com os que se passa ao meu redor. Aquele buliçoso e romântico homem que se inspirava em sonhos eternos, encontrou a calmaria da realização.

Assim, quando olho aquele muro intransponível na minha frente penso que tenho duas alternativas. A primeira delas é pôr ele abaixo com a força da minha retórica e convicção. Gritaria um “tear down the wall” para que todos os meus desejos, represados pelas décadas ou dezenas de anos, se libertassem das amarras psicológicas e filosóficas que os prenderam no meu peito. Que se livrassem das dúvidas que o meu sistema cognitivo ainda prescinde. Que se livrassem dos sonhos inúteis, dos anseios de pele que te levam para labirintos de vaidades, de regras vãs que impõem pensamentos e falsas certezas e finalmente daqueles vaticinadores de plantão que desgraçam qualquer escolha de futuro.

A segunda alternativa é mais simples e consiste em procurar por entre os guetos, deste lado do muro, aqueles em que ser o que sou é a regra. Aquele onde poderei saciar os meus desejos sem explosões nefastas, sem justificativas eloquentes, sem pressa e sem tempo.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Os Dias


Por quantas pessoas eu passo durante o meu dia? Cem, quinhentas, mil? São tantos sonhos, ambições, desejos e princípios que eu fico a imaginar como se pode ser tão sozinho no meio de uma cidade que é feita de pessoas. Com certeza há prédios, mas elas estão lá dentro. Certamente há carros, mas eles não andam por si só. E recentemente aconteceu-me algo que me pôs nesta reflexão. Ontem, enquanto tomava meu café perto do Pateo do Collegio, conheci a Meire. Conheci? Por dois anos eu cruzava com ela na rua. No começo, não nos olhávamos. Depois, corroborados pelo excesso de vezes, começamos a compartilhar alguns olhares, seguidos de cumprimentos sutis com a cabeça ou com o sorriso. Porém, somente ontem ficamos lado a lado no balcão de uma cafeteria. Comentei esta situação com ela e achamos graça. Por fim, nos apresentamos e conversamos um pouco. Coisas simples, sobre a coincidência, onde trabalhávamos e o que fazíamos. Despedimo-nos e seguimos nossos próprios caminhos. Levei comigo a impressão de ter conhecido uma simpática pessoa e pensei: quantas Meires estão entre as milhares de pessoas que passam pelo meu caminho?

Meios, ações e disponibilidade. A rigor, são os insumos da vontade, que permeia esta busca por uma pessoa que complementaria os dias. Disse “os dias”? Curioso! Este substantivo me veio ao léu depois de uma fração de momento. Poderia falar qualquer coisa, talvez “vida”, ou “destino”, mas falei “dias”. Cotidiano! E o vernáculo trouxe algo bem do fundo do meu íntimo. Estou feliz, mas ao olhar para o lado não consigo compartilhar estes momentos de serenidade com alguém. Meus dias são sempre desafiadores. Sempre há algo para refletir, pensar, montar estratégias, resolver, arbitrar, decidir. Mas há poucos eventos para contemplar. Como um olhar de menina, um beijo, um sonho. Ou aquela carícia que invade a alma e toca o coração, te vira pelo avesso e se perpetua pelos... dias. Esta brincadeira com o tempo literalmente não tem fim. Posso sonhar à noite e vivenciar o dia, como também eu posso vivenciar os sonhos pelas noites e pelos dias. O tempo da minha alma pode ser fugaz, fruto da paixão; pode ser etéreo, substanciado de alma; ou pode ser eterno, adornado pelo amor. Posso viver toda a minha vida em um minuto, e o porvir em séculos. Tudo dependerá da intensidade e devoção que dedicarei à minha causa e à minha busca, vestidas pelos tempos necessários para consumar a paz de ser amplamente feliz.

(ficção)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Tempo Passa


El tiempo pasa
Nos vamos poniendo viejos
Yo el amor
No lo reflejo como ayer

Estes são os primeiros versos da canção Años do Pablo Milanés. O tempo passa e nós vamos ficando velhos. E o amor não reflete como ontem. O nosso tempo pode ser sentido ou pressentido.  Pode existir em sensações que nos extasiam ou prostram, ou pressagiado quando se ignora os dias que passam lá fora, para além da janela da solidão. O tempo passa e nos carrega na carreira para o destino. Podemos tomar suas rédeas e evocar a direção que no horizonte suponhamos encontrar a felicidade. Ou podemos deixar o galope existir por si só, entregando-nos uma distância que deixamos para trás, sem nos ater aos que estão no caminho. Tudo é uma questão de decisão, que sempre se baseará em quem somos e no que queremos. O problema é que podemos ter uma ideia distorcida de quem somos, desfocada pela falta de interação, companheirismo e (por que não dizer?) amor.  E também podemos ser iludidos pelo que queremos quando o anseio for maior do que a temperança para alcançar o desejo. O querer muda com o ser, de uma forma profunda e arraigada à nossa alma. Mas, para algumas pessoas, o querer domina o ser. E quando isto acontece o tempo apenas passa no vazio de conquistas inúteis, na incompletude deixada no nosso coração.


domingo, 18 de janeiro de 2015

Alma de Borboleta


Todo jardim começa com uma história de amor, antes que qualquer árvore seja plantada ou um lago construído é preciso que eles tenham nascido dentro da alma. Quem não planta jardim por dentro, não planta jardins por fora e nem passeia por eles… e não haverá borboletas se a vida não passar por longas e silenciosas metamorfoses… 

Rubem Alves

Feito um castelo de cartas, deve-se cuidadosamente posicionar as ambições e anseios para que façam sentido no destino. Para que formem algo tão substancial quanto a existência. Porém, preciso nutrir os meus desejos de uma forma não aparvalhada. O desejo tem que transferir o equilíbrio entre o corpo e a alma. Se um peca por exageros, o outro pagará a conta. A paz cobrará a perenidade, e o corpo o fogo. Naquele momento em que houver comunhão entre os dois, terei as asas de borboleta e a determinação para romper o casulo.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Beijo no Coração

Igreja Nuestra Señora del Pilar - Recoleta - Buenos Aires - Foto do Autor

Talvez não haja uma troca maior que o beijo. Talvez nem o sexo que, aliás, nada é sem o beijo. Sublime momento de desejo quando os meus lábios sensíveis tocarão os lábios daquela mulher que me olha ternamente, e transforma este instante em eternamente. Por um iminente tempo, em qualquer um dos seus segundos, seus olhos desviarão em falsa displicência. E retornarão para mim com mais brilho na alma, como se vestissem o lume do meu destino. Aproximo-me até sentir o cheiro e o doce hálito que, de tão doce, como criança quero me lambuzar. Como homem, quero vestir aqueles sentidos de sempre, pelo decorrer dos séculos, pelo desanuviar da paixão. Toco-a com as mãos nas costas e a aproximo lentamente até sermos um, num bailado rítmico, quase frenético, de faces, gostos, de ângulos por onde sinto o interior daquela que será ela. Daquela alma que será dela. Daquele tempo que será nosso.

E se eu pudesse beijar o coração? Obviamente não o posso sem os recursos da poesia, mas talvez não haja uma troca maior que este beijo.  Talvez nem o beijo que, aliás, nada é sem o coração. Sublime momento de amor quando a minha alma sensível tocará a alma daquela mulher que me vê definitivamente, e transforma este instante em infinitamente. Por um iminente tempo, em qualquer um dos seus segundos, seu corpo desviará em falsa displicência. E retornará para o meu lado com mais ardor na paixão, como se vestisse o mais profundo desejo no meu destino.  Aproximo-me até sentir o calor e o gosto daquela pele que, de tão quente, como velho quero me aquecer do frio da solidão. Como homem, quero vestir aqueles sentidos de alturas, pelos caminhos do universo, pelo desanuviar do amor.  Toco-a com as mãos nos sonhos e me aproximo lentamente até sermos um, num bailado harmônico, quase parado, de anseios, fogo, delírios por onde sinto o tudo daquela que será ela. Daquele homem que será dela. Daquele infinito que será nosso.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Aniquilamento (Annihilation)


Será que todos os sistemas filosóficos e divinos, que versam sobre uma separação entre consciência e corpo, construídos em todas as sociedades humanas, quase sem exceções, não seria uma resposta ao inconformismo resultante do aniquilamento? Conquanto seres que têm consciência de si, que elaboram uma construção de vida que deve se perenizar por décadas, não é terrível pensar que tudo será em vão? Pois, no final das contas, restará apenas algo em constante deterioração, algo que não reconhecemos como nós. Apenas algo! Então, a constatação da morte por uma suposta consciência de si não deveria irritá-la?

Ao contrário, Jorge se observa morto, em alguma cadeia em Palmas, no meio da sujeira asquerosa e catarrenta das jaulas brasileiras, quase imaculado dos odores e ruídos surdos e grotescos que barulham aquele ambiente dos últimos dias, indiferentes à vida ou à morte. Como deveria aquele fio de existência, quase relutante em se lançar na ausência profunda, pensar sobre si? Se este ato fosse um alívio, ele deveria apenas exclamar “constato que estou morto”? O derradeiro suspiro seria uma espécie de conforto derivado de frustrações e de uma personalidade abjeta e desprezível, embora ainda se observe algo de humano nos seus sentimentos, o que o incomoda nesta ambivalência entre o ser e o querer ser. Seria uma auto clemência para o que ele considerava uma inadequação, ou uma sociopatia que emergiu há poucos anos. Seria o final da sua fuga, não planejada, e que se fiou no limbo da paixão, entre os precipícios do desejo e o regozijo do ego. Uma empreitada derradeira para um beco sem saída.

A questão é quais sentimentos deveriam passar pela sua mente incorpórea? Pena, conforto, suscetibilidade, raiva, aquiescência, rancor, arrependimento, sofrimento, perda, graça, dádiva?


Is it possible that all divine and philosophical systems built in all human societies, almost without exception, that seeking to decipher the separation between mind and body; would not be the response to the dissatisfaction, resulting from annihilation? Although we are beings who have self-consciousness, that elaborate a building of life that must perpetuate itself for decades, is it terrible to think that everything will be in vain? So, ultimately, there will be only something in constant deterioration, something we do not recognize as ourselves. Just something! Whatever, the finding of death by a supposed self-awareness should not irritate it?

Instead, the character observes itself as a dead body, motionless in a prison of the Palmas city, lying in a filthy dirt Brazilian jail, surrounded by discolored catarrhs, almost immaculate from smells and grotesque noises that sound in that environment of latter-days, indifferent to life or death. How that limbo of existence, almost reluctant in jumping to a deep absence, should be thinking about itself? If this diving were a relief, should it only exclaim “I realize I’m dead”? The aftermost sigh would be a kind of cozy derived from frustrations and of an abject and unworthy personality, although it’s still possible to observe something as human in its feelings, what bothers it in this ambivalence between being and wanting to be. It would be a self-clemency to what he considered an inadequacy, or a sociopathic way, which emerged some years ago. It would be the final of his non planned runaway, that was hazarded on the limbos of the passion, between the precipices of desire and the overjoy of his ego. An ultimate endeavor to a dead end.

The question is what feelings should pass through his immaterial mind? Piety, comfort, susceptibility, anger, acquiescence, rancor, repentance, suffering, loss, grace, gift?

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Inferno (Hell)


Agora eu finalmente parei. Talvez seja melhor dizer que eu estacionei o meu desejo num olhar frio e inexpressivo, que apenas sonda velhas mesas e cadeiras nesta sala. Não sei exatamente o que procuro. Penso que eu quero ser encontrado por algo ou alguém que rejuvenesça meus anseios. Para que, numa espécie de transe, atravesse todos os corredores que me levariam até a felicidade, certamente longe daqui. Mas estou cercado por paredes mal pintadas, que se avolumam para cima de mim na medida em que a minha prostração se alastra. Os tentáculos viris do inferno tocam tudo neste ambiente, absorvem tudo o que se respira e deixam no ar o fétido aroma do mofo, que prolifera no desmazelo. Meu corpo não movimenta a vontade; meus pensamentos não recriam ilusões que abstraiam o negrume pintado na existência. Nauseabundo, apenas atravesso dias e dias, escorrendo pelo calendário até a incerteza de quando o tempo irá parar definitivamente isto que agora eu chamo de cotidiano.

No meio da parede oposta há uma janela. Há algo além. Há luz que insiste em atravessar a cortina amarelada e translúcida, borrando de tons âmbares tudo que está preso nesta sala. No meio da parede emoldura-se uma janela. Para trás do além existe uma distância que se estende pelo longe até onde eu desconheça quem são as pessoas e os lugares. Há luz sobre elas, que desmascaram as expressões não mais retorcidas por rugas de preocupações.

No meio do meu coração há uma janela.


Now I finally stopped. Maybe I should say that I parked my desire in a cold and expressionless stare, which only inspects old tables and chairs in this room. I do not know exactly what I'm looking for. I think I want to be found by someone or something that rejuvenates my longings. For, in a kind of trance, I go through all the corridors that lead me to happiness, certainly far from here. But I'm surrounded by badly painted walls, looming over me inasmuch as my prostration spreads. The virile tentacles of the hell touch everything in this environment, absorb everything that is breathable in the air and let this fetid smell of mold, which thrives in the slovenliness. My body does not move the will; my thoughts do not recreate illusions that abstract the darkness painted in existence. Nauseating, I just cross days and days, streaming down through the calendar until the uncertainty about when the time will finally stop this thing that now I call quotidian.

In the middle of the opposite wall there is a window. There is something beyond. There is a light that insists in goes through the yellowed and translucent curtain, which smudges tones of amber in everything that is stuck in this room. In the middle of the wall a window frames itself. Back of beyond there is a space which extends along the distance to where I unknown who are the people and the places. There is light over them, which unmasks the expressions no more twisted by wrinkles of worries.

In the middle of my heart there is a window.

(Esta é a prosa-projeto do primeiro poema do livro “Janelas da França” - This is the prose-project of the first poem of the book "Windows of France")

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Novo Projeto Poético - Janelas da França (New Poetic Project - Windows of the France)


Evidências e imaginação são motores da argumentação. Porém, diferentemente do cientista metódico, o escritor procura a sugestão. Nada cria em si, apenas na reflexão distorcida da sensibilidade. A ausência pode ser uma entidade da mesma forma que a abundância. A solidão pode ser um labirinto, ou a motivação da existência. Depende de como lemos o que se escreve. Depende de como a semântica cotidiana e coloquial influencia a compreensão. É claro que existem universalidades que transpassam séculos. É claro que existem genialidades que refreiam o tempo. O escritor está aqui como um canal do que sente, na captura semiológica do seu mundo, envolvendo-o numa prisão sem portas para o entendimento de que a alma é cativa da substância, mas feita de liberdade. E quando há o equilíbrio confesso das tendências do espírito, os minutos que giram os relógios são insignificantes.

Evidence and imagination are engines of argumentation. However, unlike the methodical scientist, the writer seeks the suggestion. He creates nothing in itself , only builds the images in the distorted reflection of sensitivity. The absence can be an entity, in the same way as the abundance. The loneliness can be a labyrinth or the motivation of existence.  It depends on how we read what is written. Depends on how the quotidian and colloquial semantic influences the insight. Of course there are universalities that trespass the centuries. Of course there are geniuses which refrain the time. The writer is here as a channel for what he feels, in semiological capture of his world, enfolding it in prison without doors to the understanding that the soul is captive of the substance, but made ​​of freedom. And when there is a avowed balance of trends in the mind, the minutes that spin in the clocks are insignificant.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Sobre o Fim da Inocência


Escreverei sobre assuntos que talvez não estejam tão bem ligados. O que pode ser até proposital, porque eu não consigo identificar em mim as razões pelas quais eu estou tão desconfortável nestes últimos anos. São pequenos fatos, eventos, palavras e ideias que incomodam. Aparentemente, elas não estão acopladas de forma a proporcionar uma teoria reveladora, se é que existe algo semelhante. Se existir, caberá aos sociólogos e antropólogos interessados comentar o que pensam sobre a foto que ilustra este texto. Eu não penso, apenas sinto algo que entope ainda mais a minha sinusite, agravada pelo ar de São Paulo.

Estes momentos vêm de todos os lugares. Estão na bisbilhotice de ouvir conversas alheias no restaurante; no ar rancoroso com que as pessoas comentam sobre as instituições; no consumo indiscriminado de crack pelas ruas desta metrópole; nas barbáries que se estendem pelas páginas dos jornais e revistas; na malversação de políticos que tanto prometeram há alguns anos;  na imensa miséria humana que chega aos nossos pés, saltitando nos sinais, dormindo ao relento, depositando fezes e seus cheiros pelos caminhos.

Mas desta vez a aparência decreta o fim da inocência. Não há mais sorrisos para adornar o semblante, nem vestígios daquela serenidade ocasionada por uns poucos sonhos, que ainda entorpeciam a mente. A sisudez da face e a escassez de expressões traduzem uma pessoa perdida dentro do labirinto dos seus desejos. Trancafiada pelas sequelas das suas tentativas de felicidade, já que associou a alegria da vida à satisfação das suas cobiças. Esqueceu-se de quem fez o plano e do quando se imaginou a existência de um futuro e de realizações. Esqueceu-se de quem era, ou não poderia supor por desconhecer o seu íntimo. Obviamente, neste caso a ignorância é o motor da vontade. Deve-se rumar para o conhecimento. Porém, o “como”, ou o método, é a ferramenta apenas dos sábios. E definitivamente hormônios não combinam com sabedoria. Quando mais jovem, mais somos impelidos pelos instintos e pela necessidade de suprir os vácuos emocionais que surgem desde que saímos das fronteiras da infância. Não se entende aquele corpo, não se conhece as muralhas psicológicas que foram construídas nos anos imberbes.  Mas naturalmente avançamos quase como cegos na velha estratégia de se errar para aprender. E sempre se erra muito neste processo quase que caótico. Encontram-se pessoas. Às vezes constituem-se famílias, têm-se os filhos e vive-se de uma maneira relativamente confortável até os dias derradeiros da velhice.  Assim, através de gerações o mecanismo social nos impele por algo que se entende tacitamente por felicidade. O que acontece desde os tempos tribais. Há algo semelhante nas aglomerações preponderantes neste mundo. Há algo que normatiza, mesmo que tacitamente, o que se deve fazer para ser feliz. Viver em sociedade é algo como acumular signos e representações, que montam conceitos e valores e nos levam a condutas e comportamentos.

Escrevendo desta maneira, parece que até defendo as consequências semióticas no plano do indivíduo. Porém, não é apenas uma questão de defesa, mas da existência em si de um campo de interpretações derivado exclusivamente da inserção em sociedade. A significação do que está escrito aqui, e em qualquer obra com heurísticas filosóficas ou névoas literárias, pressupõe o crivo social, em maior ou menor grau. O que é belo (ou aceito) neste bando que de forma contumaz denominamos como povo, ou até país, pode não ser tão belo para outras tribos ao redor do mundo. Salvo poucos esclarecidos, ninguém parece livre do sistema de valores da sua tribo. E no mundo globalizado a questão parece ainda mais complexa porque existem tribos dentro de tribos, intersecções culturais, dispersões geográficas de ideias e patetices justificadas para aglutinação de interesses. A política deveria ser o cimento de toda a mixórdia de interesses, mas os tempos inocentes já se foram. Temos nossos gostos direcionados pelos predadores sociais. E quanto mais alienados são os indivíduos, numa espécie de preguiça mental que gera a inércia e a inépcia social, mais conduzidos eles são. É uma lei antiga que eu conheço desde os tempos da minha infância: emburrecer para dominar.  O homem chegou à lua, lançou o mote da paz e amor dentro dos movimentos hippies, derrubou o muro de Berlin, ampliou o acesso às informações e comunicações, mas continua burro, sem capacidade analítica para se entender no contexto histórico. Portanto, todos seguem o que se entende por caminho da felicidade.

Obviamente há variações comportamentais e outras formas de valores sociais ou grupais cujo conhecimento não prescinde de um prévio contato com a Antropologia moderna. De qualquer maneira, é do próprio Claude Lévi-Strauss a citação “a humanidade está constantemente às voltas com dois processos contraditórios, um tende a criar um sistema unificado, enquanto o outro visa manter ou restaurar a diversificação”. Mas provavelmente isto foi num tempo anterior ao seu “Tristes Trópicos”.  O desencanto leva a mentalidade a assassinar seus conceitos. Alguns deles tão arraigados que extirpá-los da consciência demanda algo próximo à desilusão ou prostração. Decerto, quando apenas eliminamos, sem o preenchimento dos vácuos com a lucidez dos anos ou novos momentos de reflexão, tendemos a nos sentir também esvaziados. E é nesse momento que decretamos o fim da inocência. Nada novo virá apenas revestido pela elegância do pensamento, ou pela eloquência e simpatia de quem nos transporta. Nada novo virá de uma forma gratuita ou seduzida pela imagem que fazemos do pajé ou chefe tribal. Ou ainda daquele identificado como mestre, curador da imensa obra humana. Resumida em uns poucos livros, é claro!  Para estes exercerem o domínio existe a necessidade de se criar elementos tão antigos quanto aqueles que existiram no tempo em que os aglomerados humanos se estabilizaram ao inventarem a agricultura. Cria-se o céu, prometido àqueles que seguem alguma espécie de regramento, tácito ou não. Cria-se o inferno para aqueles que se desviam. Cria-se o protetor, que cuidará do repositório obscuro do dito conhecimento. Porém, quando se elimina o céu e o inferno, bem como consequência o processo maniqueísta de classificar as pessoas, elimina-se também o protetor. Assim estaremos muito sozinhos, mas livres. É algo parecido com o escolher da pílula vermelha em Matrix. Quebrar todos os vínculos que a inocência enraizou em nosso ânimo, abre a consciência para a dura verdade do existir.

É neste contexto que histórias vão surgir e montar uma literatura livre, além de obviamente não comercial.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Retalhos da Alma


Depois de tanto tempo, finalmente cá estou para divulgar a publicação do meu primeiro livro. Atualmente ele se encontra disponível em dois formatos. O primeiro é eletrônico e está disponível na Amazon para o Kindle. Para acessar o site, basta clicar no link abaixo:

Retalhos da Alma - Kindle

O segundo formato é o impresso, que pode ser acessado através do link abaixo:

Retalhos da Alma - Versão Impressa

Basicamente, o conteúdo do livro são os textos que estavam colocados neste blog quando era chamado de Fragmentos de Uma Paixão Desmedida. Esta é uma oportunidade para quem quiser reler aqueles textos, ou para pessoas que apreciem o meu estilo.

Um forte abraço.
Checon

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Mo Yan - Mudança


A rigor, qualquer um sempre guarda algumas superstições na vida cujas origens quase sempre são indetectáveis. Porém, recentemente eu soube que nunca deixo uma mala aberta porque ela se assemelha a um caixão de defunto. Por mais estranho que isto pareça, era assim que os meus ancestrais italianos consideravam, e é por isso que eu sempre fecho qualquer mala, numa tentativa de não deixar qualquer fantasma me assombrar, mesmo sem acreditar neles. Esta é uma espécie de herança que ultrapassa as explicações. O problema é que algumas destas informações herdadas, tanto da família, como daquelas imersas no coletivo, se transformam em preconceitos. Como no caso da China, que sempre imaginamos como composta por um povo oprimido e infeliz, que trabalha a fio e ganha salários medíocres.

Bem! O que se vê neste livro do Nobel Mo Yan é uma história de base autobiográfica, em cujo enredo nem me atrevo a decifrar o que é realidade dentro da ficção. Basicamente, num estilo limpo e atraente, narra uma história que tem como pano de fundo as "mudanças" ocorridas na China desde 1969. Para nós, longe dos acontecimentos que lá se passaram, parece improvável que existisse um empreendedor como He Zhiwu, cuja principal história é deliciosamente tratada no capítulo 7. Parece fora de cogitação aquela vida simples e alegre, com camponeses bem de vida, empresários e funcionários. O fato é que o livro é lindo e, salvo alguns pontos que estranhei (como o repentino aparecimento na história da esposa de Mo), me pareceu uma história bem tocada, que atendeu a encomenda do editor de Calcutá plenamente: retratar as mudanças ocorridas na China. Além disso, reforça a minha crença de que o ambiente muda, mas as pessoas são sempre as mesmas. Os sonhos são sempre parecidos, não importa em qual canto do planeta você esteja.

Fernanda Torres - Fim


No livro "The First Five Pages", de Noah Lukeman, é aconselhado atrair e seduzir o leitor (no caso o editor) nas primeiras cinco páginas do livro para que este não vá para a pilha de rejeição. Sol Stein também sugere algo semelhante. Assim, começarei pelo primeiro capítulo do trabalho de estreia da autora, que tem o título "Fim". Deste a leitura do livro "O Amante do Vulcão", da premiadíssima Susan Sontag, eu tenho a nítida impressão de que as escritoras somente conseguem enxergar e desenvolver dois tipos de personagens masculinos:  aqueles exageradamente romantizados (no caso do Amante), ou aquele tipo totalmente vazio de ideias que apenas toca a vida com gracejo e certa melancolia. A Fernanda não foge a esta regra, mas optou pelo segundo estereótipo, em todos os principais personagens masculinos apresentados.  Começa a história em primeira pessoa num ritmo frenético (com a técnica de frases curtas e mudanças abruptas no tempo da narrativa), muito rápido para a introdução de uma dezena de personagens em diversas linhas de tempo. A certa altura eu confundi quem era quem e se o protagonista estava a pé ou de carro. Estava de carro, mas no final fica a pé. Há também o conflito de querer emburrecer o coitado, mas citar um detalhe um tanto erudito. De qualquer maneira, é divertido, bem pesquisado e bem escrito.  Eu o colocaria na minha pilha de rejeição, mas pelas características positivas eu me permiti continuar. Espere-me um pouco mais, querida Herta Müller.

A narrativa passa para a terceira pessoa e um personagem do primeiro capítulo é pescado para continuar. As frases são maiores e mais introspectivas. Há uma elegância no escrever que caracteriza uma mulher, é claro. E pequenas histórias seguem numa sequência muita rápida, com linhas de tempo concomitantes, futuro e passado misturados, personagens brotando às dezenas, variação de discurso em primeira e terceira pessoas. Em um determinado ponto eu fiquei cansado de retornar páginas e mais páginas para tentar compreender onde eu estava. Tanto que lá pela página 100 eu cogitava desistir.

Porém, depois da metade do livro a história fica mais clara e, assim, também atraente. A confusão gerada pela aparente aleatoriedade entre a utilização da narrativa em primeira e terceira pessoas é desfeita quando se percebe que os protagonistas do "fim" falam em primeira pessoa. Isto é, quando cada um dos que vão falecer falam do dia derradeiro. Para o povaréu restante, a autora preferiu a onipresença intrusiva da terceira pessoa. Um recurso arriscado que ela preferiu correr.

Em todo caso, talvez mais pelo excesso de idas e vindas do texto, os personagens vão se revelando pouco a pouco. A confusão do tempo permanece, o excesso de alternância entre cenas e personagens também, mas num ritmo menor. A construção retalhada finalmente mostra que a história caracteriza o que eu poderia designar como tragédia carioca dos anos 70. É exagero ou restritivo apenas regionalizar como "carioca"? Talvez, mas a minha vida naqueles anos transcorreu entre São Paulo e Rio. Obviamente eu percebia que existiam nuanças específicas entre os impactos daqueles anos nas duas sociedades. Isto para mim justifica o "carioca", embora que o principal está no livro: o desmoronamento da família e a explosão da individualidade. Todas as consequências sociais da crise do petróleo de 1973 não foram mostradas. Não era a intenção da história (ou das histórias) a caracterização da metamorfose dos personagens (como no Mudança do Mo Yan), a não ser para a melancolia derradeira de vidas levadas ao extremo, e daqueles que as acompanharam.

São Jorge - Saint George

  Imagem gerada pelo Midjourney São Jorge! Mostraste a coragem misericordiosa que me livrou do dragão que sempre carreguei em meu coração. I...