Google Maps - Street View
Uma nova manhã me desperta. Bem como todas as manhãs que
invadem com suas claridades a minha janela entreaberta, e picota pequenos
pedaços de sol que fugiram pelas persianas até o chão do meu quarto. Em seu
caminho iluminado pequenas poeiras flutuam, como os pássaros que prenunciam a
manhã lá fora, uma algazarra de pios que alegram aquelas momentos madrugadores. Junto
com a preguiça de um corpo indolente pelas horas de sono, espero o despertador
gritar com um barulho estridente e metálico. A fina xícara de porcelana, com
decalques alemães que ilustram rosas bem detalhadas, tanto que até creio
cheirá-las, me espera ao contrário na mesa da copa. A pequena colher também
deita ao lado e a chaleira permanece impávida, na espera do café, cujo cheiro
estará ao meu redor e me fará companhia, além de acrescentar mais um perfume
nesta manhã e na pressa de sair.
A porta range e o gato malhado me olha e foge meio sem direção,
apenas para longe. Alguns pássaros se assustam e ouço um aparvalhado bater de
asas. Penso que surpreendi aquelas vidas que se alojaram na minha varanda e sigo em frente até ganhar a
pequena calçada sob os meus pés. Uma calçada tão estreita que mal cabem duas
pessoas lado a lado. Estou sozinha e sei que a única coisa que terei que fazer
é esquivar das pessoas que vem em sentido contrário. Mas elas são raras porque
não é a direção do metrô. Dou uma última olhada para o meu lar e para as
árvores, que agora dançam com uma brisa que refresca este verão inclemente, e
mostram um verde insistente, que se atreve a estar ali, que se insinua numa
batalha sem fim contra o cinza asfáltico e o amarelo desbotado das casas que se
perfilam até onde a distância alcança. Um verde persistente que se nega a
mudar, que se recusa a fugir para lembrar que a natureza da vida está além dos
pratas, brancos e pretos dos carros. Um verde que põe um cheiro de clorofila
entre a fuligem dos diversos pós que flutuam sobre a cidade. Odores dos carros,
das fábricas, do Tietê, dos cigarros, de borracha, de tudo que exala aquele
cheiro de cidade, aquele cheiro de São Paulo.
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Alguns passos depois, encontro a primeira alma do dia. Uma
cabeça branca, que já não posso mais dizer grisalha. Os fios pretos já a
abandonaram, aparentemente há muito tempo. Devido ao calor, ele veste uma
camiseta sem mangas, bem vermelha, talvez para contrastar com a cidade e mostrá-lo
para as pessoas que por ali passam. Ele me acompanha com o olhar até o meu caminhar
passar o mais próximo possível dele. Não sei o seu nome, nem ao menos quem ele
é, mas no meio daquele rosto vincado de rugas, neste momento, aparece um
sorriso. O que me faz ouvir no seu silêncio: – Bom trabalho, filha! Nem sei se
impressão ou realidade, de qualquer maneira o seu rosto assim me disse. Uma
candura emoldurada por um pequeno barracão, pixado por aquelas letras horríveis
e ininteligíveis das gangues. Ao lado de
uma mesa vermelha, com quatro cadeiras também vermelhas. Talvez logo mais ali
se reúnam mais algumas cabeças branquinhas, e até grisalhas, e comentem
assuntos idos de tempos idos. A cidade ainda os esconde nesta manhã.
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Na sequência vem o borracheiro Tadeu. Como eu sei o seu
nome? Não, eu nunca conversei com ele, apenas sei porque algumas vezes ele põe
um cartaz: “Contrata-se borracheiro, falar com Tadeu”. Às vezes eu o vejo
devorar algum sanduíche, sentado em três pneus empilhados. Outras vezes ele
está montando um pneu, ou desmontando, ou testando a câmara na água suja de uma
banheira antiga, também suja. Mas, na maioria das vezes ele está apenas a
espera de um furo, sentado ou encostado na parede do seu minúsculo
estabelecimento, que mais parece um corredor escuro do que uma borracharia.
Raramente ele me olha, e mais raramente ainda ele me cumprimenta. É apenas mais
um personagem que vive no meu caminho até o metrô. Como os vendedores das lojas de roupas
econômicas, ou os mecânicos daquelas oficinas de carro. Ou mesmo aqueles
manobristas do estacionamento que está ao lado da estação, que guardam os
carros das pessoas assustadas em enfrentar o trânsito do centro da cidade. Jovens
que se divertem em passar raspando um carro pelo outro, condensando-os tanto
para caberem mais. São personagens acidentais de uma cidade imensa, que me
acompanham incógnitos todas as manhãs.
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(ficção)