segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Desespero


Pois bem! Rasguei todos os documentos. É pouco! Queimei todos os resquícios daquilo que dizem ser uma vida civilizada. Foi numa fogueira pequena, amarela, lá no quintal para que a fumaça enegrecida alcance a liberdade dos céus, e não encha os meus pulmões daquela fuligem insípida. A chama dançava com a brisa que conseguia vencer as paredes. Divertia-se em devorar papéis sem sentido para ela. Incendiava todos os registros de uma vida tormentosa, que fora fincada no desespero de passados cada vez mais tortuosos. Que nunca tomava a direção retilínea da felicidade. Há! Passados assados! Jocosa ironia para se libertar de tudo que enegreceu os sonhos de um jovem. Da mesma cor da fumaça arrancada daquelas folhas e plásticos. O negro que o manchou agora se espalha com o vento. Vai para lugares incertos e leva a incerteza do que fazer quando o fogo se apagar.

Mas, o que é aquilo que não se queimou? Que dizeres são estes que recusaram a virar brasa? Não é um documento, nem um diploma, nada que traga a lembrança de mim. É Hamlet? É Hamlet!

Acredito, sim, que penses o que dizes agora; mas aquilo que decidimos, não raro violamos. O propósito não passa de servo da memória, de nascer violento mas fraca validade. E que agora, como fruta verde, à árvore se agarra, mas, quando amadurecida, despenca sem chacoalho. Imprescindível é que nos esqueçamos de nos pagar a nós mesmos o que a nós é devido. Aquilo que a nós mesmos em paixão propomos, a paixão cessando, o propósito está perdido.

Toda uma vida é planejada com os auspícios da paixão. É ela o alimento da vontade, a energia da realização e a luz do caminho que ilumina os passos do espírito. Eu me apaixonei pela vida e me agarrei ao destino com a determinação inabalável da fé que tinha pela humanidade. Tinha também um coração bom e generoso, um falar pausado e manso, um jeito carinhoso de ser. E quase que toda esta ternura tocou o futuro com ares de inspiração. A mesma inspiração que, em algum momento de profunda expressão, pelas palavras e armas da paixão, fez conquistar a mais desejada das mulheres. E lá está ela na minha lembrança, na minha saudade. Bela como nunca. Vestida na minha imaginação e nua no meu desejo. Aquele caminhar pela minha vida até hoje me faz sentir o seu perfume, mesmo que ela esteja em Marte. E lá está ela de partida, pausada na porta do carro segundos antes de desaparecer. Ainda me olhou com uma expressão de cansaço ou tédio, não posso definir tão bem. Sei apenas que foi um último olhar que levou embora toda a minha paixão. E a minha vontade, a minha energia, a minha luz.

Meu propósito se perdeu e nunca mais o encontrei.

(ficção)

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