sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Verde Insistente

Google Maps - Street View

Uma nova manhã me desperta. Bem como todas as manhãs que invadem com suas claridades a minha janela entreaberta, e picota pequenos pedaços de sol que fugiram pelas persianas até o chão do meu quarto. Em seu caminho iluminado pequenas poeiras flutuam, como os pássaros que prenunciam a manhã lá fora, uma algazarra de pios que alegram aquelas momentos  madrugadores. Junto com a preguiça de um corpo indolente pelas horas de sono, espero o despertador gritar com um barulho estridente e metálico. A fina xícara de porcelana, com decalques alemães que ilustram rosas bem detalhadas, tanto que até creio cheirá-las, me espera ao contrário na mesa da copa. A pequena colher também deita ao lado e a chaleira permanece impávida, na espera do café, cujo cheiro estará ao meu redor e me fará companhia, além de acrescentar mais um perfume nesta manhã e na pressa de sair.

A porta range e o gato malhado me olha e foge meio sem direção, apenas para longe. Alguns pássaros se assustam e ouço um aparvalhado bater de asas. Penso que surpreendi aquelas vidas que se alojaram na minha varanda e sigo em frente até ganhar a pequena calçada sob os meus pés. Uma calçada tão estreita que mal cabem duas pessoas lado a lado. Estou sozinha e sei que a única coisa que terei que fazer é esquivar das pessoas que vem em sentido contrário. Mas elas são raras porque não é a direção do metrô. Dou uma última olhada para o meu lar e para as árvores, que agora dançam com uma brisa que refresca este verão inclemente, e mostram um verde insistente, que se atreve a estar ali, que se insinua numa batalha sem fim contra o cinza asfáltico e o amarelo desbotado das casas que se perfilam até onde a distância alcança. Um verde persistente que se nega a mudar, que se recusa a fugir para lembrar que a natureza da vida está além dos pratas, brancos e pretos dos carros. Um verde que põe um cheiro de clorofila entre a fuligem dos diversos pós que flutuam sobre a cidade. Odores dos carros, das fábricas, do Tietê, dos cigarros, de borracha, de tudo que exala aquele cheiro de cidade, aquele cheiro de São Paulo.

Google Maps - Street View

Alguns passos depois, encontro a primeira alma do dia. Uma cabeça branca, que já não posso mais dizer grisalha. Os fios pretos já a abandonaram, aparentemente há muito tempo. Devido ao calor, ele veste uma camiseta sem mangas, bem vermelha, talvez para contrastar com a cidade e mostrá-lo para as pessoas que por ali passam. Ele me acompanha com o olhar até o meu caminhar passar o mais próximo possível dele. Não sei o seu nome, nem ao menos quem ele é, mas no meio daquele rosto vincado de rugas, neste momento, aparece um sorriso. O que me faz ouvir no seu silêncio: – Bom trabalho, filha! Nem sei se impressão ou realidade, de qualquer maneira o seu rosto assim me disse. Uma candura emoldurada por um pequeno barracão, pixado por aquelas letras horríveis e ininteligíveis das gangues.  Ao lado de uma mesa vermelha, com quatro cadeiras também vermelhas. Talvez logo mais ali se reúnam mais algumas cabeças branquinhas, e até grisalhas, e comentem assuntos idos de tempos idos. A cidade ainda os esconde nesta manhã.

Google Maps - Street View


Na sequência vem o borracheiro Tadeu. Como eu sei o seu nome? Não, eu nunca conversei com ele, apenas sei porque algumas vezes ele põe um cartaz: “Contrata-se borracheiro, falar com Tadeu”. Às vezes eu o vejo devorar algum sanduíche, sentado em três pneus empilhados. Outras vezes ele está montando um pneu, ou desmontando, ou testando a câmara na água suja de uma banheira antiga, também suja. Mas, na maioria das vezes ele está apenas a espera de um furo, sentado ou encostado na parede do seu minúsculo estabelecimento, que mais parece um corredor escuro do que uma borracharia. Raramente ele me olha, e mais raramente ainda ele me cumprimenta. É apenas mais um personagem que vive no meu caminho até o metrô.  Como os vendedores das lojas de roupas econômicas, ou os mecânicos daquelas oficinas de carro. Ou mesmo aqueles manobristas do estacionamento que está ao lado da estação, que guardam os carros das pessoas assustadas em enfrentar o trânsito do centro da cidade. Jovens que se divertem em passar raspando um carro pelo outro, condensando-os tanto para caberem mais. São personagens acidentais de uma cidade imensa, que me acompanham incógnitos todas as manhãs.

Google Maps - Street View

(ficção)

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