terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Intocável


Um mendigo olhou profundamente nos meus olhos como se suplicando por uma mísera esmola, por uma mísera chance de lá continuar estatelado perto do meio-fio, alojado na penúria deste seu cotidiano. Olhou-me profundamente com ares de desespero, como se a vida dele dependesse daquele momento. A barba com uma suspeição de grisalha (o tempo a metamorfoseou num emaranhado amarronzado de fios) e o rosto vincado transformavam ainda mais a sua fisionomia triste, emprestando aspectos fúnebres à sua indigência. Uma espécie de estado de quase morte, que comprazia com o que supunha ser seu martírio.  Cortejava-me com o seu olhar, a sua expressão, e uma mão que se levantava daquela mistura de trapos e corpo. Não reagi e nem esbocei nenhum movimento, apenas mantive uma impavidez calculada. Não tinha nenhuma razão para ficar ali, mas também não tinha nada a minha espera. Nada que motivasse os meus passos.

Por alguns segundos ele hesitou, mas por fim abaixou o braço e continuou a me olhar. Talvez ainda mais profundamente, mas tirou qualquer resquício de aflição do semblante e passou a me observar com a frieza de um necrologista. Havia agora dois inanimados, um em frente ao outro. Ele saiu daquele personagem da rua e mostrou algo de humano, algo que transforma qualquer impressão que se tenha sobre miséria e as pessoas que vivem nela. Seria apenas um desprovimento? Aquela vida posta no meu caminho tem seus protocolos e princípios, que a orientam pelos dias. Provavelmente são diferentes dos meus. Não sei exatamente o quanto somos distintos. Certamente nos destinos, claramente nas ambições e, de forma obscura, não tenho certeza se o somos nas intenções. Não sei quem é ele, e nunca saberei. Ele não passa de um intocável, tanto pelas minhas mãos, quanto pela minha imaginação.

O sol a pino continuava a fustigar o cimento esbranquiçado da calçada, mas não retirava nenhum suor daquele rosto envelhecido, talvez menos idoso do que aparenta, talvez mais idoso do que mereceria. Naquele impasse de olhares, por um quase imperceptível movimento da boca, percebi que ele iria falar. Enfaticamente, com uma voz firme, eu disse:

- Não!

E pausadamente continuei:

- Não diga nada.

Pus a mão no bolso, peguei a carteira e percebi que não tinha nenhuma nota pequena. Retirei uma de R$ 50,00 e a dei para ele, com o devido cuidado para evitar que nossos dedos se tocassem. Aquilo o alimentaria por alguns dias, se é que este seria o uso do dinheiro. Ele sorriu e inclinou ligeiramente a cabeça numa forma de agradecimento, ou por um tempo que parecesse mais gratidão do que submissão. Nada disse então, apenas virei o corpo e caminhei pela mesma calçada com passos nem tão rápidos, nem tão lentos. Logo um casal de mãos dadas passou por mim, entretidos por uma conversa recheada de sorrisos. Depois veio uma mulher gorda, com cabelos bem longos, presos por uma espécie de elástico, inclinada para o lado devido ao esforço que tinha para quase arrastar uma sacola pesada (suponho), feita com um tecido forte, emborrachado, e com bolas vermelhas sobre um fundo branco. Não combinava com o vestido marrom dela. Ela não me olhou, nem a bela morena que rapidamente atravessou a rua. O único olhar que entrecruzou com o meu naquela manhã foi o do mendigo. Mas, quem era o mendigo?

Ainda ontem eu a olhei, com o pesar profundo da separação e olhos marejados por uma tristeza que queria irromper do meu peito. Calei na mente as palavras: Não! Não vá embora! Esperava dizê-las com o meu olhar, como uma súplica eterna, uma voz tardia que deveria assombrar sua decisão por uma mísera chance de permanecer naquele mundo, mais imaginado do que efetivamente criado, que eram nossas vidas. Por alguns instantes ela hesitou, mas virou as costas determinada, e se foi. Não havia razões pelas quais ela ficaria perto daquele corpo. O mesmo que a aquecia no frio e no calor da paixão, era agora também intocável. Tanto por ela, quanto por mim. A minhas palavras ficaram mais melancólicas, e o meu olhar tão inexpressivo quanto o de um cruel assassino. Os sorrisos se rareavam pelo cotidiano e a mente, outrora tão brilhante e criativa, se prendia no vazio da frustração. O que ela deixou não passa de um trapo e um corpo, que apenas sobrevive pelos intermináveis dias. Ou talvez não sobreviva, se aquele ônibus que rapidamente se aproxima, não conseguir frear.

(ficção)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Solidão.

"Asylbewerber03" by Andreas Bohnenstengel - http://andreasbohnenstengelarchiv.de/categories.php?cat_id=178. Licensed under CC BY-SA 3.0 via Wikimedia Commons - http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Asylbewerber03.jpg#mediaviewer/File:Asylbewerber03.jpg

Um olhar passeia pelo quarto vazio e percebe os mesmos móveis, que me acompanham há tantos anos. São as mesmas cores, os mesmos traços, os mesmos quadros. Parece que este que sou também me acompanha há muito tempo. Sou eu mesmo, sem nada a mais de relevante na personalidade, sem nada a menos porque não há muito o que perder. São as mesmas palavras, mas estão mais caladas, mais difíceis de encontrarem a liberdade para fora da boca; para fora do coração. Traduzem apenas um vasto silêncio que se estende até onde minha percepção investiga. Não há mais rastros daquela que por aqui passou. Os vestígios de alguém, que denunciariam talvez uma paixão, ou aquela incerteza confusa de sentimentos que constrói uma saudade, por ínfima que seja, já não podem mais ser vistos ou pressentidos. Decerto há um buraco no coração, há um buraco na vida e houve uma luz que se apagou para escurecer o meu cotidiano. A vida é realmente estranha. Nascemos sozinhos e passamos boa parte dela com nossos pais. Convivências distantes, que de certa forma se alheiam do processo de amadurecimento. Aí vem os amigos, que tagarelam, gracejam e zombam de tudo que pode ser colocado ou pensado nos dias. Vive-se como se com eles fôssemos herdar a eternidade. Depois ela aparece, rouba-te toda a significação da vida e te despoja de qualquer ambição que se possa caracterizar como própria. Entrega alguma coisa, de fato, mas logo leva tudo consigo. Por fim, novamente somos meninos, com a presença de alguém aqui e ali, cada vez mais rara, e sempre alheada do que você é. A única diferença é que há menos vozes, menos entusiasmo e menos vida.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Infante!

Por Credits: Pierre Holtz / UNICEF CAR / hdptcar.net at hdptcar [CC BY-SA 2.0 (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0)], undefined

Você quer dizer que sou um menino ou um soldado? Ou ambos? Se assim for, não tenho muito a dizer além de que não há nada mais perigoso do que um soldado-menino. A guerra não é uma brincadeira que pode ser levada com graça, como se estivesse numa roda de amigos e sugerisse: - vamos matar alguns bandidos? Tiros de fantasia que são disparados mais por aqueles hormônios que começam a ferver no sangue, do que por uma intenção malévola. Na realidade, se um tiro carregar uma vida para a morte, o arrependimento enterrará a consciência. O menino chafurdará toda a sua existência porvir na lama e no esgoto da compunção que cobrirá sua vida. Se sua mão tremulante tomar um rifle para que olhos ameninados vasculhem o que tombar, não será uma escolha digna de combate. Esta instância última de defesa ou ataque, campo de medidas extremas, desapego da vida, negação da humanidade, não combinam com o que aqueles poucos anos testemunharam. Mas há casos que crianças são vetustas nas desgraças. Quando o entorno respira e transpira violência e a infância é deformada pela crueldade. Nestes casos eu não seria um soldado-menino porque eu nunca teria sido um menino. Teria apenas vivido uma vida de velho, de vontade decrépita e sonhos que nunca nasceram.

Como? Menino-soldado? Nem pensar porque não é somente uma questão de ter insciência do que for feito, nem um desvio precoce de destino: é a própria antítese da infância. Rouba-se tudo: seu tempo, sua vida, seus familiares. Tudo que é estruturante, tudo que possibilitaria fornecer solidez aos seus sonhos. Entrega-lhe uma arma e uma crença, nada mais. Como tudo isto que vemos ao nosso redor, às vezes transvestido de ideologia, às vezes chama-se de fé, mas no fundo são conceitos manipulados por aqueles que se dizem sábios, que dizem guardar o repositório de conhecimentos difusos, cujas malhas de ligação de ideias são por vezes tão complexa que qualquer afirmação pode ulular delas. Qualquer mesmo! O que inclui aquelas de se criar inimigos (alguns dirão diabos, demônios, tinhosos, imperialismos e assim por diante), de se amplificar problemas, de turvar visões. O menino neste meio enxerga pelos olhos de outros porque nunca viu o que ele poderia ser.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Brilho nos Olhos

By Howie Le from San Jose, USA (eye full) [CC BY 2.0 (http://creativecommons.org/licenses/by/2.0)], via Wikimedia Commons

Este que está aqui aparece em palavras, que formam dizeres e tentam montar imagens em teu coração. São palavras que denunciam estes olhos que marejam, enquanto busco nos significados rastreados pela semântica, os significados da existência. São elementos que se equilibram entre a escuridão e a luz. E se me deixei levar pela luz para o mais longe que os meus dons permitem, o outro lado estava imerso no mais longe que a escuridão pode me prover. Onde encontrei o que há de mais obscuro na minha realidade e destino. Eu sempre me senti assim ao vagar pelos conhecimentos que a minha sede de curiosidade investigava. Eu sempre me senti assim ao abraçar as minhas obras e abandonar minha vida. Harmonia não é algo fácil quando se lida com extremos, e quem pode me trazer para a claridade é aquela que caminha mansa pela minha vida. Esquecerei os vestígios de discursos que te sugerem a inutilidade do cotidiano, e induzem um cansaço perene numa alma rodeada de sonhos. As palavras lançam meus sentidos na peregrinação de encontrar a paz do colo desta mulher. Cheirar aquela pele sedutora na procura de uma fragrância que desperte o desejo. Percorrê-la com o toque que avança pelas indiscrições veladas que a prudência contém, depondo as vestes e os receios de deitá-la no sempre. Saborear os lábios e largar os sonhos de outros caminhos para se perderem, soprados pelo hálito que invade o meu espírito e aquele homem que estava escondido do ordinarismo dos dias. Ouvi-la sussurrar palavras agora revestidas de uma fêmea, que abre as portas da paixão para gritar aqueles sons represados simplesmente por não terem alguém perto o suficiente do seu coração. Olhá-la com todo o brilho que reflete um amor, que lentamente nasce acompanhado do tempo que quer virar eternidade.

São Jorge - Saint George

  Imagem gerada pelo Midjourney São Jorge! Mostraste a coragem misericordiosa que me livrou do dragão que sempre carreguei em meu coração. I...