Um mendigo olhou profundamente nos meus olhos como se suplicando por uma mísera esmola, por uma mísera chance de lá continuar estatelado perto do meio-fio, alojado na penúria deste seu cotidiano. Olhou-me profundamente com ares de desespero, como se a vida dele dependesse daquele momento. A barba com uma suspeição de grisalha (o tempo a metamorfoseou num emaranhado amarronzado de fios) e o rosto vincado transformavam ainda mais a sua fisionomia triste, emprestando aspectos fúnebres à sua indigência. Uma espécie de estado de quase morte, que comprazia com o que supunha ser seu martírio. Cortejava-me com o seu olhar, a sua expressão, e uma mão que se levantava daquela mistura de trapos e corpo. Não reagi e nem esbocei nenhum movimento, apenas mantive uma impavidez calculada. Não tinha nenhuma razão para ficar ali, mas também não tinha nada a minha espera. Nada que motivasse os meus passos.
Por alguns segundos ele hesitou, mas por fim abaixou o braço e continuou a me olhar. Talvez ainda mais profundamente, mas tirou qualquer resquício de aflição do semblante e passou a me observar com a frieza de um necrologista. Havia agora dois inanimados, um em frente ao outro. Ele saiu daquele personagem da rua e mostrou algo de humano, algo que transforma qualquer impressão que se tenha sobre miséria e as pessoas que vivem nela. Seria apenas um desprovimento? Aquela vida posta no meu caminho tem seus protocolos e princípios, que a orientam pelos dias. Provavelmente são diferentes dos meus. Não sei exatamente o quanto somos distintos. Certamente nos destinos, claramente nas ambições e, de forma obscura, não tenho certeza se o somos nas intenções. Não sei quem é ele, e nunca saberei. Ele não passa de um intocável, tanto pelas minhas mãos, quanto pela minha imaginação.
O sol a pino continuava a fustigar o cimento esbranquiçado da calçada, mas não retirava nenhum suor daquele rosto envelhecido, talvez menos idoso do que aparenta, talvez mais idoso do que mereceria. Naquele impasse de olhares, por um quase imperceptível movimento da boca, percebi que ele iria falar. Enfaticamente, com uma voz firme, eu disse:
- Não!
E pausadamente continuei:
- Não diga nada.
Pus a mão no bolso, peguei a carteira e percebi que não tinha nenhuma nota pequena. Retirei uma de R$ 50,00 e a dei para ele, com o devido cuidado para evitar que nossos dedos se tocassem. Aquilo o alimentaria por alguns dias, se é que este seria o uso do dinheiro. Ele sorriu e inclinou ligeiramente a cabeça numa forma de agradecimento, ou por um tempo que parecesse mais gratidão do que submissão. Nada disse então, apenas virei o corpo e caminhei pela mesma calçada com passos nem tão rápidos, nem tão lentos. Logo um casal de mãos dadas passou por mim, entretidos por uma conversa recheada de sorrisos. Depois veio uma mulher gorda, com cabelos bem longos, presos por uma espécie de elástico, inclinada para o lado devido ao esforço que tinha para quase arrastar uma sacola pesada (suponho), feita com um tecido forte, emborrachado, e com bolas vermelhas sobre um fundo branco. Não combinava com o vestido marrom dela. Ela não me olhou, nem a bela morena que rapidamente atravessou a rua. O único olhar que entrecruzou com o meu naquela manhã foi o do mendigo. Mas, quem era o mendigo?
Ainda ontem eu a olhei, com o pesar profundo da separação e olhos marejados por uma tristeza que queria irromper do meu peito. Calei na mente as palavras: Não! Não vá embora! Esperava dizê-las com o meu olhar, como uma súplica eterna, uma voz tardia que deveria assombrar sua decisão por uma mísera chance de permanecer naquele mundo, mais imaginado do que efetivamente criado, que eram nossas vidas. Por alguns instantes ela hesitou, mas virou as costas determinada, e se foi. Não havia razões pelas quais ela ficaria perto daquele corpo. O mesmo que a aquecia no frio e no calor da paixão, era agora também intocável. Tanto por ela, quanto por mim. A minhas palavras ficaram mais melancólicas, e o meu olhar tão inexpressivo quanto o de um cruel assassino. Os sorrisos se rareavam pelo cotidiano e a mente, outrora tão brilhante e criativa, se prendia no vazio da frustração. O que ela deixou não passa de um trapo e um corpo, que apenas sobrevive pelos intermináveis dias. Ou talvez não sobreviva, se aquele ônibus que rapidamente se aproxima, não conseguir frear.
(ficção)