quinta-feira, 26 de outubro de 2017

A Névoa

By http://rebcenter-moscow.ru/ (English: own work Rebcenter-moscow)
[CC BY-SA 4.0 (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0)], via Wikimedia Commons

Ando, ando, ando! Passam-me janelas entreabertas e seus interiores parciais desacanhados. Passam-me pessoas incertas com seus olhares esgueirados, avultadas pelo meu débil e frágil corpo. Passam-me mendigos com seus olhares pedintes e suas farrapadas malcheirosas; destacados nas suas falsas negligências. A multidão incha na minha frente como um muro barulhado, como uma onda abraçada pelos edifícios sombrios. Num brusco repente, assusto-me! Não posso gritar, não posso chorar e trancafio minhas emoções dentro de um peito cujos sonhos foram penhorados, cujas glórias foram esquecidas e tudo o que me define está por ora malogrado. Cansado, procuro uma calçada mais vazia e sento-me na guia.

Chego à beira deste precipício que invento, dentre tantos que me lancei. A paisagem mágica na minha cabeça é aquele horizonte que não posso trilhar, porque cavei o abismo que ora me assombra. A virtude me cobre ao vestir-me de esperança, tão tênue quanto os hesitantes passos que aqui me trouxeram. Você está em algum lugar onde o meu olhar alcança, mas, quando penso em ti, uma névoa se forma. Estou dentro dela tanto quanto o abismo. Seguir para ti é saber que irei passar pelo despenhadeiro. Andar, andar, andar! Em algum momento cairei. Sombras me acompanham e, algumas vezes, procuro encontrar teu rosto nelas.

- Olá! Por que olhas para o longe?

Uma voz feminina me pergunta. Não posso dizer que o longe está ao lado. Ao mesmo tempo em que não é o sorriso dela, é um sorriso. Ao mesmo tempo em que não é o cândido olhar dela, é alguém a me ver. Não posso dizer que a distância, quiçá infinita, é não sentir no meu toque o rosto dela, embora tenha uma suave tez a me comover.

- Quanto é longe para ti?

Respondo com esta pergunta que, mesmo tendo um significado doloroso para mim, não pode ser entendida como tal. Assim, ela senta ao meu lado, abre uma brecha na névoa invisível que me cerca, e com uma improvável sabedoria diz:

- O longe é para onde quero ir. Atrás de nós, tudo que está perto me desespera.

Então ela desvia o rosto e também começa a contemplar a distância. Virei o meu para olhá-la e vi uma pele clara, que ornava um feitio ao mesmo tempo suave e marcante. Por aquelas poucas palavras, talvez apenas gentis, sem artifícios ou manhas, eu senti vontade de beijá-la. Não devido àquele quase formalismo que acontece quando nos aproximamos de alguém que conhecemos. Senti vontade de beijar suas palavras, na pele de onde elas vieram. Precisava dizer algo. Sentia-me compelido a preencher aquele momento um tanto estranho e insólito. Nunca nada semelhante houvera acontecido comigo e eu preciso parar de pensar. Precisava dar voz a alguma coisa. Pensei que iria balbuciar, mas, para minha surpresa, minha voz saiu tão firme que parecia ter uma convicção eterna.

- Quero andar!

Ela sorriu e virou novamente o rosto para mim, permitindo que eu contemplasse aquele azul claro de seus olhos, o que tornara o céu insignificante.

- Meu nome é Laura.

Sorri levemente e respondi dentro de uma mistura de serenidade e satisfação.

- Jorge.

Não alenta largar o meu nome sem verbos ou pronomes. Este laconismo traz-me o que está obscurecido no meu peito. Afugento pessoas e suas ideias com a falta de sorrisos e a concisão, o que me é penoso porque ao mesmo tempo pareço sentir falta delas. Meu paradoxo: amo e odeio a solidão. Quero a solidão porque não acredito que alguém possa amar isto que defino como um trapo de gente. Por outro lado, não quero a solidão porque acredito em uma improvável afinidade de almas. Sim! Este instante retorna à minha mente alguns versos do Pink Floyd que vadiaram na minha adolescência. Às vezes, quase que perfurando o vinil de tanto tocar. Às vezes em suaves e despretensiosos murmúrios cantados na ociosidade.


And if I show you my dark side 
Will you still hold me tonight? 
And if I open my heart to you 
And show you my weak side 
What would you do? 

Luto contra o meu silêncio e as minhas dúvidas seculares e suavemente digo após um suspiro.

- Invento o mar. E continuo: - Invento o pôr do sol sobre ele.
- Invento as ondas e seu ruído constante e imortal.
- Invento as gaivotas (dissimuladamente olho para cima) e ouço seus gritos estridentes.
- A prisão da cidade não é suficiente para a minha liberdade, pois estarei onde eu quiser estar. – Sempre!

Percebo lágrimas no seu rosto e não compreendo os pensamentos que traduziram tão simples dizeres em evidente emoção. Talvez ela seja uma pessoa extremamente emotiva, ou passe por algum problema tão sério, que nocauteia a razão e seu comedimento necessário frente a um estranho. Talvez ela seja pisciana! Oras! Já começo a não logicar corretamente. Não acredito em horóscopos e imagino explicações estapafúrdias neste meu grau de desconhecimento. De fato, quem é ela? Por que está aqui? E principalmente por que está comovida? Entretanto, no meio das minhas indagações ela recomeça o diálogo.

- Milton Nascimento.
- Hã? Respondi e contorci a fisionomia para mostrar que não entendi.
- O que você disse: invento o mar. – Invento o sonhador em mim. – É a canção Cais do Milton. – Ela me toca profundamente e esteve comigo nos momentos em que conseguia sonhar.

Lentamente ela começa a murmurar a música e eu medito sobre aquela estranha coincidência. Amo Cais! É claro que inadvertidamente poderia ter roubado aquela frase da música. Há tantas canções que se prendem na minha mente, como tatuagens a lembrar de fases da vida pelas quais passei. Há tantos versos soltos no meu pensamento. Do Lorca, do Neruda, Maiakovski, mas os que saem da minha boca vêm das canções. Talvez porque eu pense que a vida é identificar nosso ritmo, e segui-lo. Que não somos nada além de acordes e sintonia. Como este dueto que hesita em se iniciar. Não! Espere! Agora virá o verso “invento o cais”, ao qual me antecipo:

- Venha!
- Para onde? Ela responde.

Levantei a minha mão e estiquei o indicador por sobre o cinza do asfalto. Apontei a incerteza citadina e disse:

- Para o mar. – Encontraremos o cais. – Venha!



quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Morte

By Chris from Poznań, Poland (Przychodzimy tylko raz...) [CC BY 2.0
(http://creativecommons.org/licenses/by/2.0)], via Wikimedia Commons


Não diga que estou vivo! Calo-me para o meu íntimo num desespero de fatos. Onde está minha vida? Onde deixei os vestígios de quem sou. Remonto-me em palavras abstratas, quase que fortuitas, e digo que vêm da inspiração. Acredito nesta minha mentira como quem acredita que vive no túmulo do cotidiano. Há a aparência de real no sorriso automático que deflagra minha presença, no colorido das roupas, nas conversas alegres e vazias, mas é só isto.  Por dentro existe algo (que dizem ser uma alma) absolutamente morto, desprovido de paixões e sonhos. Há algo que vagueia pelos dias na mendicância de alguns beijos e abraços, de algumas vozes acalentadoras que deixam vestígios permanentes no coração. Entretanto, nada é perene, nada dura além de fagulhas de momentos. É um “nada” que deslumbra a morte na esquina dos anos que estão no porvir.

Os dias passam céleres, inclementes na tez que se enruga, nas paixões que não estão mais ao lado. Os dias escorrem pelo calendário e sombreiam o porvir, incertos de quando o negrume tomará conta do destino. Futuro é uma palavra escassa nas bocas senis, dita apenas nos entrementes de outrem, nas bocas esperançosas de alguém ou nos ditos ilusionados de ninguém. Os dias entremeiam um corpo frágil, curvado pelos anos inglórios, pela constatação da inutilidade da vida. Cobrem um corpo com o silêncio da insignificância, cada vez mais vultosa e imponente.

Caberia então abreviar o inevitável? Meu Deus! Como o óbvio se desvincula da constatação, numa afronta clara ao logicismo que pretensamente priorizamos. Há toda uma conspiração moral que dissocia o que é premente do adiável, como se fôssemos marionetes de presunções morais e absolutas, sem considerações sobre a insuficiência da vontade de viver.  Um tiro! Bang! E tudo se reduziria ao que se é: nada. Não valeria a pena abraçar aquele corpo inerte, sem vida. Não valeria a pena beijar aqueles lábios secos e frios. A criança que lá estava, afiançadora do brilho dos olhos que advém dos sonhos, já se foi há tanto tempo. O fato é que também não valeria a pena abraçar e beijar aquele corpo antes do tiro. Ele é incapaz de acrescentar a paixão na vida de outrem, de despertar desejos reprimidos, de inspirar suspiros da mais profunda beleza que se esconde em todo coração. É apenas um corpo que se move, adiante de murmúrios de incômodos, de olhares desviados e de insimulações de tolo.

Não diga que estou vivo! A vontade foi sequestrada e o resgaste é a morte.

Bang!

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Laura

By Helgi Halldórsson from Reykjavík, Iceland (old man) [CC BY-SA 2.0 
(https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0)], via Wikimedia Commons

Mais uma noite se deita a partir da minha janela. Vem sorrateira, quase que no repente. Quando não se atenta, vem com seu negrume invadir os corações solitários de uma cidade grande. Ouço alguns sons: embora não se calem, os ruídos ficam dóceis e o silêncio importuna. O manto escuro, quase silencioso, se avoluma, se espalha, infecta como numa epidemia de languidez até que, até que; acendo a luz para espantá-lo. Com suas paredes claras, minha casa agora me protege do escuro sombrio, que está lá fora. Então digo de súbito:

- Laura! Estamos no claro.

Meu coração se petrifica: há anos a Laura não está aqui. Poderia dizer que ela me abandonou, mas não foi pela sua vontade. A cidade a levou com sua vida e deixou-me o abrupto da sua ausência. Ela poderia e talvez quisesse ir bem mais tarde. Mas a convalescença a deitou naquela cama para que o perecer tirasse seu corpo. Laura! Laura! Não me abandone. Não faça da minha vida um vácuo de sentimentos. Não deixe a minha voz falar sozinha. Como gostaria que você voltasse, sentasse ali com aquele chá de frutas, que tanto apreciava, e me olhasse com seus olhinhos miúdos. Um tanto alegres, mesmo na súplica de lágrimas, mesmo nos momentos mais tristes. Ainda não disse todos os “eu te amo” que deveria dizer para ti. Ainda não acarinhei tua pele macia e clara tantas vezes quanto gostaria.

Sento-me e penso nos poucos dias que estive com ela. Dos outros tempos, apenas uma palavra me vem: desperdício! Gostaria de ter alcunhado os meus anos com outra palavra. Talvez algo mais ameno como ordinário, mas não na acepção desdenhosa que tanto ouvimos pelas ruas. Gostaria de ter sido apenas uma pessoa comum, dentre tantas que conhecemos. Alguém que nada inspira além de uma frase roubada de outrem num contato de whatsapp, adornado por uma face sorridente à frente de um momento de anos atrás. Destes mesmos anos que me levam para o ocaso, dentro de uma demência que mal posso medir ou sentir, porque sou eu quem me avalia dentro de uma conjunção de circunstâncias. Grito: o que fiz? Não importa! A pergunta mais correta é: o que deixei de fazer? Eu persisto na tentativa de me enganar com questões irrelevantes, faço-me perguntas insensatas, talvez oriundas de vestígios de autocomiseração. O que deixei de fazer? Deixei de amar? Se nem mais sei diferenciar verdade de ilusão, deixei de lutar por aquilo que acredito?

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Veneno

By Earle M. Pilgrim (The Estate of Earle M. Pilgrim) [GFDL 
(http://www.gnu.org/copyleft/fdl.html) or CC BY-SA 4.0-3.0-2.5-2.0-1.0 
(http://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0-3.0-2.5-2.0-1.0)], via Wikimedia Commons

A distância te empresta um vulto, que se encolhe a cada passo teu para o longe. A distância não se consome: derrama espaço entre nós e deita lágrimas no solo. Naquele corpo que se vai, eu me perenizei como homem. Agora ele me leva embora. Nada me deixa senão a lembrança de momentos que não se repetem mais. Nada me deixa senão uma saudade que acidamente corrói aquele amor refugiado no peito. Nada me deixa! Perdi a paixão, o amor e os vestígios de felicidade e agora sou apenas um mendigo emocional, com os trapos de abraços alheios e a sujeira das intenções. Estou espalhado pelas ruas e noites, nas vaginas insensíveis e no escuro da minha alma. É assim que intento sepultar tua saudade, com o veneno do meu desejo, demovido do afeto e da afeição.

Mas as sombras me revelam e cobrem as mentiras que conto para mim. Uma vitrine em falso transparente bloqueio, deixa o interior insurgir para mostrar meu rosto impreciso e pálido. Não parece com aquele que te teve nos braços, enovelado contigo. Recurvo sobre mim e aninho os olhos para buscar a improvável esmola do brilho dos teus. Olhar encharcado, fronte vincada, nenhum início de sorriso no canto da boca. Nenhuma palavra suspirada para praguejar da sorte. É apenas uma caricatura lúgubre, velando pelo passado e sem um destino para desenhar uma suavidade na feição. Não tenho mais refúgios para as minhas mentiras, só cavernas para me esconder da verdade que me tornei. Nestas sombras encontro o escuro dentro de mim.

Enveneno-me lentamente no avançar das horas, no contar dos dias e na eternidade dos anos. Enveneno-me com a melancolia de não tê-la em mim. E eu a tive aqui no meu corpo, como um lapso da eternidade, que se pausa a cada lembrança do teu sorriso. Sei que na distância repousa a esperança de submeter o vazio. Talvez um barulho de um carro, que se aguda ao passar, traga-te. Ou o destino me presenteie com outro vulto que, desta vez, se expanda na aproximação. Rompa as sombras, ilumine os caminhos e seja um antídoto par o veneno de perdê-la.

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Abandonado


Deitado ou largado, olho para um teto que um dia foi branco. Que um dia te acolheu como refúgio de uma vida entortada por desacertos. Como ele, hoje eu apenas desboto as lembranças que buscam os contornos do teu rosto. O mesmo rosto que acolhi no meu peito, com seus mesmos suspiros e lágrimas.

Estou largado, ou deitado, e as manchas maculam meu teto e minha saudade.

Você disse que sempre me amaria, e o brilho nos teus olhos me fez acreditar. Podia ver a mulher dentro do corpo, lutando contra suas lamúrias passadas, seus homens tortos que entorpeciam a mente com promessas juradas e fingidas. Podia ver seu embate sincero. Podia sentir o calor de sonhos de um sol, a iluminar faces e caminhos. Mas, tudo se apagou e muito tempo se passou desde o som do adeus que libertaste dos teus lábios. E esta palavra martela minha consciência. Não são os sussurros apaixonados que se deitaram comigo nesta mesma cama. Não é o "querido" salpicado tantas vezes naqueles dias que escorreram no calendário para o passado. É apenas um som. Adeus!

domingo, 9 de julho de 2017

Verdades e Mentiras


Quando foste embora, deixaste tuas verdades no meu peito, e elas doíam latejantes numa realidade que não queria. Tuas palavras calavam as minhas. O meu “eu te amo” era tão solitário, mas era minha verdade e minha mentira. Podias me mentir também que eu acreditaria. Seus carinhos ásperos vasculhavam minha pele e pareciam não me tocar. Ouvia-te como sussurros e escolhia tuas melhores frases. Ignorava todo o mais. Odiava o vulto e amava o homem até que os dois se foram. Agora a poeira levantada pelos fatos turva o horizonte onde sonho. Talvez eu te veja como silhueta na lonjura do destino, ou talvez seja apenas uma sombra do homem que aqui estava. Queria apenas verter um amor, que supunha transbordar no meu coração, para te inundar com a esperança. Mas tu odiavas futuros. Não esperaria a maré para zarpar para um longe, qualquer um longe. Não consegues sofrer com as âncoras de passado, nem com mares revoltos. Apenas vai, vai e vai. Nada te prende, nem ao menos uma súplica sincera, mesmo que mentirosa. Tua voz ainda ecoa, como ditas por um fantasma que me rouba as alucinações.

Eu deveria estar só e cantar uma cantiga antiga e triste. Deveria remoer minhas frustrações silenciosamente e chorar minhas limitações. Consterna-me perceber que minha felicidade está na mentira de um mundo perfeito e que não sou feita para verdades.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

O Meu Silêncio

By psyberartist (haunts of solitude) [CC BY 2.0 
(http://creativecommons.org/licenses/by/2.0)], via Wikimedia Commons

O meu calar extirpa minhas ideias e me deixa sozinho no amplexo deste quarto, envolto por sombras e silhuetas de objetos; por vultos estáticos que testemunham uma inconsciência fugaz dentro de um mundo amarronzado e escuro. Chamaria tudo isto de ambiente ou casa, mesmo que eu sinta que um lugar é onde se depositam corpos. Sim! Como num grande depósito de lixo humano, a cidade se estende silenciosa nesta madrugada fria e distante. Sim! Há distância entre a realidade e o desejo e há muito que se percorrer para se chegar às planícies onde o silêncio é o olhar ao invés do calar. Onde nada redunda porque se terá o que é somente necessário. Onde bastarei em mim, como um velho diante da morte. Neste lugar, morrerei num suspiro que liberta a alma para o vazio amplo e infinito e as palavras não precisarão mais ser ditas, dada a insignificância delas. Este será o momento do silêncio supremo e imperecível. Não agora.

Hoje o meu silêncio te ignora, como se deixada numa tumba do meu querer no mesmo tempo passado de onde e como abandonaste este cômodo. Ao sublimar rusgas, rasgou-me as palavras de paixão como se fosse possível amassar e destruir folhas etéreas, que somente estão em livros de lembranças na biblioteca da mente. Não se pode destruir o intangível, mas me tornaste delével, enclausurado por um sentimento renitente que atormenta minha parca razão e me deixa próximo ao limbo da loucura. Não mais a tenho, e talvez nunca a tive, mas a tua ausência me faz crer que num pequeno momento das nossas vidas, nossas paixões foram eternas. Quando o meu silêncio era apenas formado por palavras ditas para dentro, para o meu coração. Não precisávamos de som porque éramos o silêncio entre as notas musicais. Harmonizávamos duas solidões num cântico suave e atraente até entendermos que o verdadeiro calar estava no barulho que chamávamos de diálogo. Estava na compreensão de que nunca ouviríamos um ao outro, por mais que gritássemos.

domingo, 8 de janeiro de 2017

Guarde Meus Sentimentos

By Jiri Hodan [Public domain], via Wikimedia Commons

Não me é permitido dar-lhe o meu coração. Há uma eternidade dentro dele que não se contém e que eu gostaria de abortar seus momentos em tua vida. Mas não posso dar-lhe o meu coração, somente os meus sentimentos que nele estão. Apenas não os corporifico em tua pele, em teu sopro de homem. Não quero o sangue do meu coração como hemorragia da tua paixão, se debatendo dentro do meu peito para sentir-me penetrada no íntimo dos meus desejos. Quero apenas fechar os olhos para materializá-lo em suposta presença e sussurrar as vozes da minha alma. Levarei as minhas mãos até o teu rosto para nele repousar de uma vida fatigada. Quero tocá-lo com a calma dos dias vindouros, relegados à uma ausência de corpos. Quero decorar a tua face com o desenho miúdo e suave das minhas mãos. Quero sentir o teu sorriso com a sensibilidade de uma cega, que persegue o calor da tua tez, a umidade dos teus lábios e das lágrimas que sofrem a separação.  Sentirei o teu abraço a me apertar e a travessura das tuas mãos a me explorar. Ouvirei as batidas suaves do teu coração a ritmar minha vida. Ah! Você me tem não tendo; você me quer não querendo. Serei sempre apenas palavras na concessão da minha sensibilidade, que você a tem. Serei apenas uma mulher nos sons que tumultuam tua percepção, que marejam os teus olhos e embargam tua voz. E você será sempre um homem em sofrimento por não ser capaz de amar.

Então recebe os meus sentimentos e os guarde como um tesouro atemporal. Encontrará neles a jovialidade já esquecida e a maturidade que nos faz unidos pela solidão. Terás todas as chaves do que sinto para me encontrar em qualquer instante, em qualquer distância. Guarde-os como numa caixinha de música e se baile nos meus sonhos.

Por sugestão de Ana Claudia Mello

São Jorge - Saint George

  Imagem gerada pelo Midjourney São Jorge! Mostraste a coragem misericordiosa que me livrou do dragão que sempre carreguei em meu coração. I...