quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Laura

By Helgi Halldórsson from Reykjavík, Iceland (old man) [CC BY-SA 2.0 
(https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0)], via Wikimedia Commons

Mais uma noite se deita a partir da minha janela. Vem sorrateira, quase que no repente. Quando não se atenta, vem com seu negrume invadir os corações solitários de uma cidade grande. Ouço alguns sons: embora não se calem, os ruídos ficam dóceis e o silêncio importuna. O manto escuro, quase silencioso, se avoluma, se espalha, infecta como numa epidemia de languidez até que, até que; acendo a luz para espantá-lo. Com suas paredes claras, minha casa agora me protege do escuro sombrio, que está lá fora. Então digo de súbito:

- Laura! Estamos no claro.

Meu coração se petrifica: há anos a Laura não está aqui. Poderia dizer que ela me abandonou, mas não foi pela sua vontade. A cidade a levou com sua vida e deixou-me o abrupto da sua ausência. Ela poderia e talvez quisesse ir bem mais tarde. Mas a convalescença a deitou naquela cama para que o perecer tirasse seu corpo. Laura! Laura! Não me abandone. Não faça da minha vida um vácuo de sentimentos. Não deixe a minha voz falar sozinha. Como gostaria que você voltasse, sentasse ali com aquele chá de frutas, que tanto apreciava, e me olhasse com seus olhinhos miúdos. Um tanto alegres, mesmo na súplica de lágrimas, mesmo nos momentos mais tristes. Ainda não disse todos os “eu te amo” que deveria dizer para ti. Ainda não acarinhei tua pele macia e clara tantas vezes quanto gostaria.

Sento-me e penso nos poucos dias que estive com ela. Dos outros tempos, apenas uma palavra me vem: desperdício! Gostaria de ter alcunhado os meus anos com outra palavra. Talvez algo mais ameno como ordinário, mas não na acepção desdenhosa que tanto ouvimos pelas ruas. Gostaria de ter sido apenas uma pessoa comum, dentre tantas que conhecemos. Alguém que nada inspira além de uma frase roubada de outrem num contato de whatsapp, adornado por uma face sorridente à frente de um momento de anos atrás. Destes mesmos anos que me levam para o ocaso, dentro de uma demência que mal posso medir ou sentir, porque sou eu quem me avalia dentro de uma conjunção de circunstâncias. Grito: o que fiz? Não importa! A pergunta mais correta é: o que deixei de fazer? Eu persisto na tentativa de me enganar com questões irrelevantes, faço-me perguntas insensatas, talvez oriundas de vestígios de autocomiseração. O que deixei de fazer? Deixei de amar? Se nem mais sei diferenciar verdade de ilusão, deixei de lutar por aquilo que acredito?

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Veneno

By Earle M. Pilgrim (The Estate of Earle M. Pilgrim) [GFDL 
(http://www.gnu.org/copyleft/fdl.html) or CC BY-SA 4.0-3.0-2.5-2.0-1.0 
(http://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0-3.0-2.5-2.0-1.0)], via Wikimedia Commons

A distância te empresta um vulto, que se encolhe a cada passo teu para o longe. A distância não se consome: derrama espaço entre nós e deita lágrimas no solo. Naquele corpo que se vai, eu me perenizei como homem. Agora ele me leva embora. Nada me deixa senão a lembrança de momentos que não se repetem mais. Nada me deixa senão uma saudade que acidamente corrói aquele amor refugiado no peito. Nada me deixa! Perdi a paixão, o amor e os vestígios de felicidade e agora sou apenas um mendigo emocional, com os trapos de abraços alheios e a sujeira das intenções. Estou espalhado pelas ruas e noites, nas vaginas insensíveis e no escuro da minha alma. É assim que intento sepultar tua saudade, com o veneno do meu desejo, demovido do afeto e da afeição.

Mas as sombras me revelam e cobrem as mentiras que conto para mim. Uma vitrine em falso transparente bloqueio, deixa o interior insurgir para mostrar meu rosto impreciso e pálido. Não parece com aquele que te teve nos braços, enovelado contigo. Recurvo sobre mim e aninho os olhos para buscar a improvável esmola do brilho dos teus. Olhar encharcado, fronte vincada, nenhum início de sorriso no canto da boca. Nenhuma palavra suspirada para praguejar da sorte. É apenas uma caricatura lúgubre, velando pelo passado e sem um destino para desenhar uma suavidade na feição. Não tenho mais refúgios para as minhas mentiras, só cavernas para me esconder da verdade que me tornei. Nestas sombras encontro o escuro dentro de mim.

Enveneno-me lentamente no avançar das horas, no contar dos dias e na eternidade dos anos. Enveneno-me com a melancolia de não tê-la em mim. E eu a tive aqui no meu corpo, como um lapso da eternidade, que se pausa a cada lembrança do teu sorriso. Sei que na distância repousa a esperança de submeter o vazio. Talvez um barulho de um carro, que se aguda ao passar, traga-te. Ou o destino me presenteie com outro vulto que, desta vez, se expanda na aproximação. Rompa as sombras, ilumine os caminhos e seja um antídoto par o veneno de perdê-la.

São Jorge - Saint George

  Imagem gerada pelo Midjourney São Jorge! Mostraste a coragem misericordiosa que me livrou do dragão que sempre carreguei em meu coração. I...