quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Morte

By Chris from Poznań, Poland (Przychodzimy tylko raz...) [CC BY 2.0
(http://creativecommons.org/licenses/by/2.0)], via Wikimedia Commons


Não diga que estou vivo! Calo-me para o meu íntimo num desespero de fatos. Onde está minha vida? Onde deixei os vestígios de quem sou. Remonto-me em palavras abstratas, quase que fortuitas, e digo que vêm da inspiração. Acredito nesta minha mentira como quem acredita que vive no túmulo do cotidiano. Há a aparência de real no sorriso automático que deflagra minha presença, no colorido das roupas, nas conversas alegres e vazias, mas é só isto.  Por dentro existe algo (que dizem ser uma alma) absolutamente morto, desprovido de paixões e sonhos. Há algo que vagueia pelos dias na mendicância de alguns beijos e abraços, de algumas vozes acalentadoras que deixam vestígios permanentes no coração. Entretanto, nada é perene, nada dura além de fagulhas de momentos. É um “nada” que deslumbra a morte na esquina dos anos que estão no porvir.

Os dias passam céleres, inclementes na tez que se enruga, nas paixões que não estão mais ao lado. Os dias escorrem pelo calendário e sombreiam o porvir, incertos de quando o negrume tomará conta do destino. Futuro é uma palavra escassa nas bocas senis, dita apenas nos entrementes de outrem, nas bocas esperançosas de alguém ou nos ditos ilusionados de ninguém. Os dias entremeiam um corpo frágil, curvado pelos anos inglórios, pela constatação da inutilidade da vida. Cobrem um corpo com o silêncio da insignificância, cada vez mais vultosa e imponente.

Caberia então abreviar o inevitável? Meu Deus! Como o óbvio se desvincula da constatação, numa afronta clara ao logicismo que pretensamente priorizamos. Há toda uma conspiração moral que dissocia o que é premente do adiável, como se fôssemos marionetes de presunções morais e absolutas, sem considerações sobre a insuficiência da vontade de viver.  Um tiro! Bang! E tudo se reduziria ao que se é: nada. Não valeria a pena abraçar aquele corpo inerte, sem vida. Não valeria a pena beijar aqueles lábios secos e frios. A criança que lá estava, afiançadora do brilho dos olhos que advém dos sonhos, já se foi há tanto tempo. O fato é que também não valeria a pena abraçar e beijar aquele corpo antes do tiro. Ele é incapaz de acrescentar a paixão na vida de outrem, de despertar desejos reprimidos, de inspirar suspiros da mais profunda beleza que se esconde em todo coração. É apenas um corpo que se move, adiante de murmúrios de incômodos, de olhares desviados e de insimulações de tolo.

Não diga que estou vivo! A vontade foi sequestrada e o resgaste é a morte.

Bang!

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