sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Silhueta


Na ausência do teu corpo, desenho tua silhueta na minha lembrança. Como um pretenso artista que engana a realidade ao ornar de sentimentos os traços que imagina, contorno lentamente teu semblante, que se apega num sorriso tênue e ligeiramente começado. Ergo a mão para tocar tua boca, nos mesmos lábios macios que murmuravam cantigas antigas, escavadas daquilo que nos sobra da infância. Nos mesmos lábios que beijo, desprovido do tempo que nos separa, e sinto o teu gosto falseado por uma mente que não se conforma por ter te perdido. Traio a realidade como alguém que foge para a loucura. A mesma loucura de perpetuá-la como se o possível fosse transgredido pelo querer, como se o querer desse a permissão para derrubar o inconcebível de abraçá-la. Avesso ao inevitável, eu posso perambular pelos teus caminhos na sina de persegui-la pelos sonhos. Pelos sonhos que se tem e pelos que se vive ao inserir tua presença na alucinação que é a existência. Pelos sonhos que se tem e pelos que insisto ao inserir teu corpo no desejo da minha persistência.

Na ausência do teu corpo, desenho tua silhueta na minha lembrança. Procuro na miragem aquela mulher que vagou nas minhas torturas, quando flagelado pela obstinação de amar eternamente o que é etéreo. O amor só tem significado na eternidade, mas se esvai com o escorrer de dias no calendário. Por vezes, vai-se na aluvião da querença pelo desdito, quando se açoita a personalidade em mórbida tristeza, sem que haja uma causa consciente. Julgamo-nos imerecidos pela dádiva da paixão porque podemos ter atração pela desgraça de nos punir, de irritar o nascimento com a morte, de maldizer o que somos por não gostarmos do nosso coração. Ah! Este trapaceiro! Que sempre escolhe o intocável e macula a beleza com seus anseios lúbricos, misturados numa pureza profunda que só se explica no encontro das almas, quando nos despimos da desumanidade e mostramos as entranhas da nossa personalidade. Às vezes há algo de belo lá, às vezes não. De qualquer forma, nem sempre gostamos do encanto do que se sente, mesmo quando ele se estende como um pôr do sol dentro do nosso peito. Basta um olhar testemunhado por uma lágrima. Pois a íris, quando imersa em emoção, é tão bela quanto todas as poesias criadas, todos os quadros pintados e todas as canções que nos cativam.

Na ausência do teu corpo, desenho tua silhueta em mim. Passo a protagonizá-la no enredo de me amar. Eterna e impunemente.

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