domingo, 31 de dezembro de 2023

Deus e o Estado

Imagem gerada pelo DALL-E 3
 
Há um livro deitado na minha imaginação. Está fechado por uma capa, em cujas espalhadas letras não há nenhum paramento de retórica, apenas um título que deixa vestígios de dúvida: Deus e o Estado! Estariam juntos, ou seria uma interpolação conflituosa? A interrogação não me cabe, já que o li de forma fragmentada pelo tempo, talvez para colecionar citações, opiniões e fundamentações. Pensamentos do filósofo que não possuem uma forma arraigada, nisto que chamo de meu presente temporal. Sim! Há um título e algumas dúvidas que se derivam das variações como o estado de Deus no Estado, ou Deus no estado do Estado. Assim, como em toda boa leitura, sou levado pelo escritor a imaginar caminhos por onde contemporâneos passaram, como a formação dos mitos, as raízes da desigualdade, a dinamicidade e uso político de arquétipos. Embora estes sejam temas que não estarão aqui, são como viagens que planejo para a inserção do meu instinto em vestes robustas de veracidade. Todo bom livro pode ser considerado como um tíquete para outros deslocamentos da minha mente, para mundos observáveis apenas pela construção do pensamento.  

A forma como li também se revela na natureza de Bakunin e seus escritos, já que ele dizia que sua própria vida era um fragmento. De fato, as vidas de todas as pessoas são minúsculos fragmentos de histórias, que às vezes se interconectam além do seu tempo, no futuro, quando há um registro destas ideias. No fundo, toda a humanidade é uma construção ou destruição feitas sempre norteadas por lideranças que não passam de outros fragmentos. Pessoas muitas vezes falíveis e suscetíveis às doutrinações e mitos. A consciência de que nunca haverá um todo é porque ideias são atropeladas pelo tempo, às vezes são carregadas pelos séculos, como aquelas gregas; às vezes são esquecidas às margens da temporalidade. Então, o ideal de algumas pessoas é se transformarem em mitos, para desta forma se inserirem na perfeição que a imaginação daquelas pessoas limitadas constrói. Pessoas que o livro descreve como sem possibilidade de acesso às informações que permitiriam deixar os fantasmas de lado, bem como os governos e líderes que lhes impusessem certo conhecimento ilusório, destinado a manutenção das engrenagens de poder. A atualidade pode ser até um pouco mais complicada do que imaginava Bakunin, mas a forma não é tão diferente: inunda-se de informação para que, de forma subterfugida, se passe as mais convenientes para a alienação. Nunca existirá um "todo" de conhecimento. Apenas fragmentos revestidos de autoridade (muitas vezes descambando para autoritarismo), darão ao povo um "todo" para que diante deste, se sintam fracos e impotentes. Quando a desfaçatez se tornar evidente, seja por percepção tardia ou por outros "todos", adapta-se tal "todo" e seus arquétipos.  

Em alguns pontos, ainda se pensa na arquitetura de uma revolução social, um tema que será aprofundado oportunamente no que tange não somente à vinculação relacionada a uma real transformação das sociedades, mas também em alternativas ou outras formas de se revolucionar. Isto não é aprofundado no livro, provavelmente devido à impossibilidade na época de uma flexibilização acarretada por uma melhor distribuição de renda, o que ocorreu nas poucas décadas subsequentes aos grandes conflitos do século XX e, de certa forma, minimizou discursos de rebeliões radicais até o final do século no mundo ocidental não periférico. Dito e defendido no livro, um dos elementos que mais corrobora para a manutenção da opressão é a religião. Observe a frase destacada: 

"O céu religioso nada mais e do que uma miragem onde o homem, exaltado pela ignorância da fé, encontra sua própria imagem, mas ampliada e invertida, isto é, divinizada" 

Poder-se-ia expandir a ideia para os detentores da autoridade do conhecimento, ou falso conhecimento se levarmos a questão "autoridade" ao autoritarismo da primeira metade do Século XX e que agora novamente se esboça no século XXI. Não é dito explicitamente, mas o mecanismo me parece semelhante também fora dos âmbitos da igreja, trocando-se adjetivos como ilusórios para fake news, por exemplo. Não emprego convicção nisto devido a extrema necessidade de se aprofundar em assuntos tão amplos e complexos, para se extrair da mixórdia de informações, derivada da sua abundância, a neutralidade conjectural dos elementos.  

Enfim, o livro não é uma espécie de fundamentação do anarquismo, muito menos desta aberração que chamam de anarcocapitalismo. Está mais para um monólogo de uma personalidade histórica. Quem sabe se não é um diálogo se o íntimo do leitor absorver as lógicas emaranhadas nos fatos, bem como as especulações e prognósticos, e começar a conversar consigo, para aquele Bakunin que se encontra no íntimo de todo pensador. Para todas as pessoas que se sentem oprimidas e percebem a razão silenciada pelos excessos e pela ignorância que parece se alastrar de forma assustadora, embora ainda não se possa medir sua influência, apenas contabilizar os estragos que oxalá sejam temporários. É possível identificar similaridades com a atualidade nas críticas ao positivismo (e ao estranho conceito de religião positivista), ao idealismo e até à uso indiscriminado da ciência quando assume as rédeas do poder. E é no âmbito desta identificação que podemos começar a revolução, pelo menos nas nossas mentes. 

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