quinta-feira, 3 de julho de 2014

Next Station, Anhangabaú

http://commons.wikimedia.org/wiki/Alan_Turing#mediaviewer/File:Turing_Plaque.jpg

Repentinamente, após um esquisito efeito sonoro, as mensagens do metrô começaram a ser traduzidas para o idioma inglês. Agora, a grande massa de turistas estrangeiros que vieram para copa, formada majoritariamente por países onde predomina o idioma espanhol, pode entender qual é o nome da próxima estação. Eu vi muitos argentinos, colombianos, uruguaios e chilenos, poucos cidadãos de outros lugares. Mas isto definitivamente não importa, mesmo que na França eu tenha que me preparar para entender o que é droite ou gauche, ou perceber que FranqualanRosevelte é a estação Franklin Roosevelt. O que é relevante é que esta discussão trouxe na minha mente uma história interessante. Porém, o que entrelaçamento (creio que seja o que conheci por entanglement antes dos iberos lusos meterem a mão, ou opinião) tem a ver com as estações de metrô? Tudo e nada. Obviamente, o que se faz num trem na estação Barra Funda não implica movimentações de outro trem na estação Jabaquara, exceto em casos de greve onde parece haver uma simultaneidade orquestrada. De qualquer maneira, o que se faz aqui é reflexo do que pensamos ocorrer no mundo dito civilizado. Uma tentativa vira-lata (para se usar o termo démodé do sempre moderno Nelson Rodrigues) de querer parecer primeiro mundo. E isto me leva a questão do méson-pi e do Cesar Lattes, que muitos de você somente o conhecem por causa do nome do sistema de gestão de curricula acadêmicos. Lattes foi o primeiro a descrever o méson-pi na revista Nature, mas quem levou o Nobel foi o britânico Cecil Powell, seu companheiro de pesquisas. Naquela época, nosso viralatismo usava baldes de piche em picos do Chile, ao invés dos modernos e caros aceleradores de partículas, o que pode ter arrazoado seu esquecimento pela Academia Sueca. Paciência! O placar permanece Argentina 5 x Brasil 1 em números de Nóbeis, o que eu considero muito mais relevante do que quantidade de copas do mundo.

Em 2006 eu fui penetra no primeiro evento sobre computação quântica no país, realizado no Rio Grande do Sul. Mas não vou falar que foi em Pelotas para não zoarem comigo. Consegui entrar como uma espécie de representante da USP e, para parecer que não estava boiando tanto, tive que manter a minha boca calada o maior tempo possível, e fazer cara de coruja atenta.  Penetra mesmo, mas bem intencionado. Larguei a física na década de 80 traindo-a com a ciência da computação. Ocorre que neste século as duas ficaram amigas em torno da QTM. Para quem não sabe, o “T” da sigla é do Alan Turing, o primeiro a descrever como uma máquina que ainda não existia deveria funcionar: o computador. Tecnicamente, todo computador é uma máquina de Turing, e agora vocês podem suspeitar o que é o “M” (machine). O “Q” é exatamente a aliança que ligou as duas áreas do conhecimento, ou seja, a quântica. Como todo interessado em novas fronteiras da ciência da computação, especializado em criptografia, eu precisava me inteirar sobre o assunto. É uma boa intenção, não?

Bem! Continuarei depois neste blog para explicar a pirâmide de arseneto gálio, os critérios para viabilizar um computador quântico, a questão que vale um milhão de dólares (equivalência P x NP), entanglement (eu prefiro a tradução literal: emaranhamento), onde tudo é processado e o que eu estou fazendo aqui?

Tudo o Que Tenho Levo Comigo - Herta Müller


“A urgência do desejo e a perfídia da felicidade há muito fazem parte do meu passado”.

“Uma velha russa a abriu, pegou o carvão e me mandou entrar. O quarto era baixo, a janela ficava na altura do meu joelho. Sobre um banco estavam duas galinhas magras e cinzentas. Uma das galinhas tinha a crista caída sobre os olhos, balançava a cabeça feito pessoa sem mãos com o cabelo caído sobre o rosto”.

Confesso que é difícil caracterizar este livro da Herta. A narrativa te transporta de amarguras a encantos, de jocosidade a graça. Monta cenas de tristezas sem melancolia, aquiescência sem mágoas. Há passagens em que o discurso vasculha o íntimo, mas longe de teorizações psicológicas ou sociológicas. São visões de um jovem que amadurece no constrangimento de uma situação imposta pelo stalinismo, que utiliza seu esforço, e seu corpo de ascendência alemã, como um despojo de guerra. Principalmente dentro de cinco anos que o protagonista fica enclausurado numa espécie de campo de trabalho forçado. Um dentre vários que foram feitos para a reconstrução da Rússia após a Segunda Guerra Mundial.

Entretanto, o entendimento que este jovem tem da conjuntura não proporciona mágoas ou ressentimentos. Apenas o induz a uma adaptação a uma situação que foge do seu controle ou vontade. E neste ambiente ele constrói outra vida, com personagens que são colocados ao seu lado na penúria, ou fazem parte daqueles que mandam ou se aproveitam da situação. Além de outros inventados, como o Anjo da Fome, que possui a onipresença na míngua dos seus dias e o mantém no limbo da vida. E assim ele passa pelos dias e narra a significância dos pequenos momentos e objetos deste novo mundo. Detalhes que passariam despercebidos na “urgência dos desejos” ou na “perfídia da felicidade”, mas assumem uma importância quando todo o restante lhe é extirpado. Logo de início aparece a erva-alheira, que nasce na aleatoriedade dos campos e fendas do chão. Sabe-se então qual é a melhor época do ano para comê-la, ou acrescentá-la na sopa. Brinca-se com a semântica do seu nome, com as fibras que retiram o mastigável do seu sabor no inverno. Conhece-se os diversos tipos de neve, a melhor pá para se retirar o carvão dos trens, a mistura correta de cimento para que não se quebre os quando se armazenados. Conhecem-se pessoas estranhas, como o marido que toma a comida da mulher anuída por tradição. Sabe-se dos piolhos e dos pentes artesanalmente construídos para retirá-los da cabeça. Das galinhas magras e cinzentas e de pessoas sem mãos. Vive-se enfim num mosaico, ou num calidoscópio acinzentado pelos lugares esquecidos pela história. Mas se vive na narrativa deste excelente drama.    

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Bate-papo com Paulo Andrade, ou Besteirol Desestruturado


24/06/2014

É Paulo! Esse clima de Copa me faz lembrar que eu estive em outra torcida recentemente. Na arquibancada eu torcia fanaticamente para que as “cordas” puxassem um universo mais elegante. Daquele tipo de uma estética lógica ímpar, onde todas as conclusões são derivadas de um pequeno conjunto de afirmações e axiomas simples. Infelizmente eu não tenho mais o domínio da instrumentação necessária para compreender os detalhes, os dribles, as firulas e as estratégias da evolução matemática que prometia revolucionar o âmago da Física. E ela me parecia um tanto complexa, a tal ponto do Brian Greene filosofar em algum dos seus livros se o mundo real não seria complexo de fato. De qualquer maneira, eu me comprazia com a ideia de que a inconstância na aceleração da expansão do Universo poderia ser devida às flutuações de bramas próximas, ao invés de uma sinistra matéria escura mutante, cujas hipóteses de existência se ancoram em noções extravagantes sobre a realidade das coisas. Whatever! O Paul, teu xará, já foi laureado. Aquela matemática maluca que inseria equações nas contorções estranhas e 10-dimensionais da geometria Calabi-Yau, ou 11-dimensional na Teoria M, ou ainda 12-dimensional na Teoria F, parece ter cansado os mais veteranos e assustado os iniciantes, que temem perder suas carreiras num espaço pouco compreendido. No fundo, qualquer outra teoria que procure explicar o Modelo Padrão, atolado de partículas, precisaria de mais partículas. E o que aparentemente temos de melhor é a supersimetria.

Para aqueles desavisados que insistiram na leitura até aqui, é importante citar que este artigo que o Paulo deixou na minha linha do tempo advém de uma discussão que começou nos anos 70, com a mais assimétrica coisa que se conhecia à época: férmions (partículas) e bósons (forças). Precisava-se de uma teoria que explicasse as lacunas do Modelo Padrão. Ou seja, por que umas partículas são mais pesadas que as outras? Por que existe um determinado número de férmions? A explicação seria a supersimetria? Pois é! Uma simetria deve conjugar comportamentos destes dois componentes da Natureza, que tudo formam. E neste contexto foi importante a observação de que o bóson de Higgs pode decair em outras associações de partículas e forças para que o Modelo Padrão tenha suas interações teóricas comprovadas experimentalmente. Faltava a partícula. Também é importante dizer que existem dois grupos no LHC, denominados CMS e Atlas. Se as observações forem feitas pelos dois grupos independentes, a chance de erro toca o improvável.

Mas nem tudo são flores. Para que toda a edificação do Modelo Padrão seja sólida, para que não haja um prostíbulo de partículas se interagindo (que no final das contas nos levaria imediatamente a um enorme buraco negro), é importante postular a supersimetria e, consequentemente, achar as “supercompanheiras”. O Modelo Padrão não explica tudo. Funciona analogamente quase como a teoria clássica da mecânica newtoniana (funciona, mas há detalhes a serem investigados). O LHC parece ter energia suficiente para que seja possível criar as pesadas supercompanheiras e colocar o amálgama na nossa compreensão da Natureza. Porém, até o momento, elas se escondem.

30/06/2014

Poderá existir algo que transcenda nossa percepção? Não veríamos o Universo de uma forma subjetiva? Neste contexto, ainda estamos na classificação que Aristóteles deu ao (digamos) Grupo Jônico: observadores da Natureza. Obviamente, a quântica mostra (e ninguém consegue contestá-la) que definitivamente Deus joga dados. Deus, Tao, Lula, seja lá o que nossa arrogância de criação onipresente cegue o discernimento. O fato é que todos os eventos não passam de borrões de realidade e nós, organismos biológicos, cujos sensores energizados permitem apenas observar uma fração de realidade, justamente aquela necessária para manter nossas vidas animais, moldamos a compreensão para transcender as necessidades imediatas. Com um instrumental limitadíssimo, é claro.

Daí, cada encruzilhada que passamos nos leva a outra encruzilhada. Por exemplo, dentro do que eu me lembre da Teoria M, existe uma experiência sugerida de criação de universo. Isto é, junta-se um bando de físicos e engenheiros numa espécie de LHC planetário (ou galaxial, quem sabe?), acelera-se algumas partículas e bum! Cria-se um universo novinho em folha através de um big bang. Depois de frações de segundo, a brama se separaria da nossa e continuaria a criar seu próprio espaço. Poderíamos pensar em ajustar algumas constantes físicas para gerar mais planetas, ou diminuir a quantidade ou intensidade dos raios cósmicos para termos mais chances de vida. Ou seja, um dos físicos poderia ser o deus do trovão, o outro deus dos mares e o coordenador seria Odin. O que é isto? Hierarquia de deuses? Seremos deuses num futuro (se não destruirmos nosso planeta antes)?

O curioso é que ao se perscrutar os céus não percebemos nem um mísero sinal de radiação gerada por vida inteligente. Universo burro! É claro que quando o SET foi estabelecido pouco se falava das circunstâncias especiais que fizeram este belo planeta ter chances de vida. As mais importantes foram o bombardeamento inicial de cometas aquosos e, principalmente, a trombada com Thea, que criou a Lua (protegendo-nos de objetos espaciais e estabilizando o clima), esquentou e proveu momento angular para o núcleo do planeta (o que possivelmente criou o campo magnético que nos protege dos raios cósmicos e do vento solar) e deformou nossa superfície ao criar as placas tectônicas e, consequentemente, os continentes. Bem! Poderíamos ser peixes se assim não acontecesse. Glu, glu... A inteligência do córtex é exceção também. Custa muita energia. Tanta que nenhum outro animal a tem...  Se fosse uma vantagem evolucionária, estaríamos agora vendo uma copa do mundo com toda espécie de animais. Gorilas contra macacos-prego. Os beques poderiam ser elefantes, ao invés do loirinho André Luiz. Eu escalaria para o gol uma baleia azul!

Por fim, a matemática. Diferentemente das religiões e do lulopetismo, onde existe uma filosofia (se é que podemos chamar assim) com base dogmática, a ciência tem estruturação axiomática. A matemática, com sua força lógica, é a sua linguagem. A questão básica é a determinação da possibilidade da complexidade na descrição dos eventos, ou se a crença dogmática dos cientistas, de que tudo pode ser reduzido a um núcleo elegante de explicações lógicas, é verdadeira. A “verdade existe” é um axioma que remonta aos gregos, se não me engano. Ela existe?

quarta-feira, 28 de maio de 2014

O Primeiro Livro


Depois de tanto tempo, finalmente eu publiquei o meu primeiro livro. Atualmente ele se encontra disponível em dois formatos. O primeiro é eletrônico e está disponível na Amazon para o Kindle. Para acessar o site, basta clicar no link abaixo:

Retalhos da Alma - Kindle

O segundo formato é o impresso, que pode ser acessado através do link abaixo:

Retalhos da Alma - Versão Impressa

Quanto aos leitores que não possuem ou não querem utilizar o Kindle na versão eletrônica, peço um pouco mais de paciência porque eu liberarei uma versão em PDF na Livraria Saraiva.

Basicamente, o conteúdo do livro são os textos que estavam colocados neste blog e no meu outro espaço, chamado de Invenção do Romance. Esta é uma oportunidade para quem quiser reler aqueles textos, ou para pessoas que apreciem o meu estilo.

Um grande abraço.
Checon

sexta-feira, 21 de março de 2014

Inocência


G.Helnwein - Painel na entrada do CCBB - São Paulo - SP - Foto tirada pelo autor

Amar!  Nas palavras transviadas de Mário de Andrade: um verbo intransitivo. Pecar, outro verbo cujo mérito surge na dependência dos sistemas de valores de cada pessoa. Amar é inexplicável se quisermos uma precisão lógica confortável. Pecar é mais claro porque se referencia no que acreditamos. Porém, eu poderia pecar se disser que não acredito em amor? Ou poderia amar se disser que acredito no pecado e o relego da minha vida, pela força do meu livre arbítrio? Da poesia de Neruda eu trago um verso que diz: “amo o que não tenho”. Amo uma imagem que criei em todo o meu próprio exercício de viver. Uma imagem de mulher que ainda não existe e possui atributos harmônicos com o quais eu suponho sentir os vestígios da felicidade.  Mas peco em não lhe dar formas na minha realidade.

Neste momento talvez ela seja uma garota que surge ao lado do menino que está no meu coração. Os anos que o infortunaram transformaram a lascívia dos seus sentimentos em doce ternura. Nada há mais para se desejar, a não ser a inocência de perceber que o mundo não é mais o mesmo. Que as pessoas envelheceram. Que a amargura petrificou o seu coração.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Onde está a poesia? (Parte II)


Pablo Neruda! Não seria elegante chamá-lo de um menestrel das ideias românticas porque a dimensão da sua criação vai muito além disto. “São mais tristes os molhes quando atraca a tarde”! É uma pena que o encanto dos versos vindouros se perdeu com o seu falecimento. É verdade que o declamar ritmado das suas poesias decreta uma solidão tão imensa, que a vontade de continuar a lê-lo não acaba mais, no retiro de palavras que te levam para dentro do íntimo romântico, da necessidade de comungar o amor. Eu me lembro da primeira vez que ouvi a citação do nome do poeta, através da música “Trocando em Miúdos” do Chico Buarque (“devolva o Neruda que você me tomou, e nunca leu”). Quem é Neruda? Perguntava-me. Conheci-o através de uma canção desesperada um pouco tarde na minha vida, é claro. O que é de se estranhar, para as pessoas que hoje me conhecem. A pergunta que imagino fazerem nas minhas costas é como alguém que tanto aprecia poesia não leu Neruda mais cedo? Bem! Há explicações, como há momentos na vida em que largamos um assunto e, depois de passados muitos anos, nem bem entendemos as razões. Depois de São Paulo eu fui morar numa pequena cidade do interior do Estado. Não muito distante para o meu padrão de hoje, mas longe demais para aquela década de 80. Isto é, era inviável viajar até São Paulo para visitar a Biblioteca Municipal da Celso Garcia. A da cidade era mais apropriadamente classificada como medíocre. Livros velhos, empoeirados, doados. Folhas rasgadas ou faltantes, assuntos que dependiam mais do gosto de nobres almas, que enchiam as prateleiras e seus sensos de dever cumprido com doações culturais. Esta foi e é a situação da maioria das cidades brasileiras. E para entender a gênese desta característica comum, basta entrar numa Saraiva para perceber que o lugar mais cheio é o das revistas. Temos uma cultura de bancas de jornal, não de livrarias ou bibliotecas. Naquela pequena cidade Neruda nunca perfilou entre o Patativa do Assaré e a culinária da Dona Benta. Mas eu também nunca fui ao seu encontro em prateleiras alheias. Era uma época de definir o que eu queria para o futuro, e a escrita não estava nas minhas cogitações. Eu gostava de matemática!

De qualquer maneira, trinta anos se passaram. Se fosse possível hibernar desde a década de 80, um cidadão feito um urso citadino perceberia alterações profundas na sociedade, no uso da tecnologia e no comportamento das pessoas. A primeira coisa que acharia insólita, se não assustasse os transeuntes com a falta de banhos, seria que todas as pessoas ficam concentradas num pequeno dispositivo, parecido com uma carteira. Telinhas coloridas, barulhos estranhos, fios que saem da caixinha e entram nas orelhas. Ninguém olha para frente, baixam a cabeça e dedilham freneticamente desenhos que não compreende. Na televisão grande e fina, poderá notar que nas tardes de domingo não existe somente o Sílvio Santos, há uma infinidade de canais.

- Ufa! - O Sílvio ainda está lá. A macarronada com almôndegas também engorda os que sentam à mesa.

E ele continua com os cabelos pretos e a mesma risada. Parece embalsamado naquele anúncio tácito de que o fim de semana está perto do fim. Ainda se pode sentir a mesma angústia do prenúncio da segunda-feira, fato que nada mudou nestas décadas. Entretanto, mesmo com a constatação de que nem tudo se descaracterizou, algo incomoda o fictício hibernante. Umas pequenas caixas, algumas com uns dois quilos, outras ainda menores, se espalham pelas casas e escritórios. Parece que o mundo está inundado de computadores, tablets e smartphones. Tudo gira em torno deles. Trabalho e lazer. As pessoas conversam pelo Facebook, Whatsapp, Twitter, Skype. Algo que faz o filme 1984 parecer ingenuidade negativa. Se o Big Brother existe, conforme concebido por Orwell, ele vende carros da Fiat e esponjas de aço da Assolan. Porém, as pessoas escrevem o que sempre falaram desde que se juntaram em sociedade, assuntos triviais do cotidiano. Fofocas, falsidades verdadeiras, futebol, filosofia de botequim, frases de autoajuda e eventualmente algo relevante. É claro que é necessário empurrar a propaganda para o lado ou apertar um “x” devidamente escondido para excluí-la do primeiro plano. Ela, alma encarnada nas televisões de outrora, achou outra área para estender sua influência. Afinal de contas, é sempre o merchandising que tudo movimenta, que tudo justifica e, principalmente, que tudo paga.  E obviamente vai empurrar tela abaixo o que mais interessante for para seus propósitos, numa espécie de competição de todas as agências por atenção, o que demanda criatividade e perseverança dos produtores de conteúdos já transmudados em profissionais. Empacota-se uma música, preferencialmente aquela que pode ser ouvida sem muita atenção, que apenas faz chacoalhar o pé. Junta-se um rápido vídeo, que agora chamam de clip, e pagam para os mecanismos de busca colocarem na frente de outras pesquisas. A coisa toda ficou meio dissimulada, o que é muito sinistro.

De qualquer maneira, onde está a poesia?

No mesmo Youtube em que se pode assistir um rol de porcarias, como cantores que procuram imitar bodes em duplas, flagrantes irrelevantes do cotidiano como acidentes, também se pode achar a poesia do Neruda. Bem como a da Florbela Espanca, Fernando Pessoa e até do Tomas Tranströmer, último poeta agraciado com um Nobel.  É certo que o poema "The Blue House", declamado por Louise Korthals, tinha “imensas” 36 curtidas no momento em que escrevia este parágrafo (a 36ª foi minha), o que ironicamente mostra a irrelevância de um poeta neste sistema. Mas ele está lá. Em outra rápida pesquisa, sem muitos critérios, encontrei belas poesias em canções feitas por grupo chamado “Pouca Vogal”. Desta forma, eu acredito que ainda existam vastas belezas por serem descobertas e apreciadas, como eu também penso que o hibernante terá dificuldades de encontrá-las pelo simples fatos de não estarem em evidência. Nelson Rodrigues certa vez escreveu: “antigamente, o silêncio era dos imbecis; hoje, são os melhores que emudecem. O grito, a ênfase, o gesto, o punho cerrado, estão com os idiotas de ambos os sexos”. Nada mais atual do que esta frase, e nada é mais verdadeiro para perceber que devemos procurar no silêncio as belezas estéticas que tocam mais o íntimo do que a exposição despropositada de pernas e sexos. O sujeito que foi tirado da sociedade por tantas décadas faria o que ele fazia no momento de início da sonolência: conversaria com outras pessoas afins nos gostos. As cafeterias ainda existem, bancos de praças também. Basta conversar para descobrirmos as chaves de pesquisas na Internet. A junção das técnicas antigas com as novas é que é poderosa.

Ah! Então a poesia está aí?

Não!

(continua)

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Onde está a poesia? (Parte I)


Não escrevo estas linhas com saudosismo um tanto desmedido, nem com qualquer resquício démodé advindo de uma pessoa que não caminhou com a evolução dos costumes. A rigor, nem sei se posso alcunhar estas últimas décadas com algo parecido a evolucionárias, mas isto é uma questão que eventualmente eu discutirei, com subsídio da minha leitura do Niall Ferguson. O fato é que atualmente eu estranho a falta da poesia na música popular brasileira, diferentemente de um passado que emblematicamente eu representei pela música “Esquecimento”, do Fagner e Brandão. Esta canção está no maravilhoso álbum Orós, de 1977, que possui uma forte expressividade interiorana, vinda do sertão cearense. Além de contar com a participação de excelentes músicos, como Dominguinhos, Hermeto Paschoal (que assina o arranjo), Itiberê, Márcio Montarroyos, dentre outros. Não consigo perceber nada parecido nas rádios que gritam nos carros, quase sempre com um incômodo bum, bum, bum. Parece que no meio desta barulheira há algumas vozes sincopadas, nem tanto como recurso estético, talvez mais por deficiência do como se dizer. Não noto músicas parecidas na TV, embora eu acredite que seja por minha culpa, já que não consigo mais assistir aqueles apresentadores atrozes, que querem aparecer mais do que o assunto que apresentam.

Então, onde está a poesia?

Passei a minha infância na cidade de São Paulo. Mais precisamente na zona leste, no meio da multidão corintiana, das ruas sem árvores, de construções abandonadas onde eu empinava pipa. Nunca fui um craque – bem longe disto – mas insistia no futebol de salão na quadra da Escola Joly, bem no meio da Rua Serra de Botucatu. Aprendi a andar de bicicleta nas vias fechadas em frente às delegacias, bem no meio da revolta estudantil de 1968 quando coquetéis molotov singravam por cima das armas da polícia política para estourarem nas fachadas. Eu não sabia disto, nem aquelas crianças que me acompanhavam nas noites alegradas por aqueles lugares presenteados, no meio de prédios decaídos, estes sim ladrões de espaços. O ano terminou (ou não, conforme algumas opiniões) com o Ato Institucional nº 5. E tudo ficou negro na sociedade brasileira, embora eu pense que clareou a nossa arte.

Naquela época, as baladas dos Beatles já tinham se transformado em músicas com letras um pouco mais elaboradas, como a da longa e sinuosa estrada que leva até a sua porta. Além disso, se iniciava o processo de criação política, com as músicas de protesto que deixariam um legado de canções de alta qualidade poética, com as dos álbuns “Nos Dias de Hoje” de Ivan Lins e ”Construção” do Chico Buarque, além da beleza romântica do Vinícius de Moraes e da magnitude estética de um Tom Jobim e tantos outros. Isto me lembra de que em 1974 apareceu a versão definitiva de Águas de Março, do Tom. É extasiante pensar que uma simples obra de uma casa em Angra dos Reis virasse uma poesia musicada em mais de 50 interpretações pelo mundo. Tive o prazer de conhecer o garçom do Garota de Ipanema que forneceu o papel para o Tom escrevê-la (na realidade era aquele papel grosso que envolvia vários maços de cigarro). Pena que alguns poucos anos foram suficientes para que eu perdesse o nome dele na minha memória.

Mas, onde está a poesia?

Será que a minha geração migrou a atenção para o vigor e profundidade dos livros, abandonando assim os ritmos que, no fundo, limitariam as alternativas poéticas? De fato, conheci Maiakovski muito cedo, como cedo também me envolvi com a poesia do Drummond e recuperei as de Fernando Pessoa, um best seller obrigatório da minha adolescência. Passei rapidamente para histórias maravilhosas. Ítalo Calvino, Graciliano Ramos, Philip Roth. Mais recentemente Julian Fuks e Jennifer Egan. Música era algo vinculado aos gritos juvenis, àquela vontade de ritmar as batidas do coração com o que se enxerga no mundo. Livros são os verdadeiros alimentos da mente, que incitam a inteligência e nos permitem vagar por imaginações alheias, ao conhecer a dimensão da alma humana com os instrumentos do processo de amadurecimento. Entretanto, se somente isto explicasse o processo, todos os meus contemporâneos teriam cursado psicologia. A arte nos movimenta porque reflete o que sentimos. E o que sentimos é reflexo do mundo onde estamos imersos, da significação dos símbolos e da complexidade do viver numa sociedade que precisa constantemente ajustar a valoração dos princípios morais e éticos.

Porém, onde está a poesia?

(continua)

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Anjo (série cartas)

Foto tirada pelo autor no Museu de Belas Artes de Dijon

Eu conheço um pouco o trabalho do Jung e a questão da sincronicidade. Creio que o li na década de 80 e o que me vem à mente é um trabalho estatístico rigoroso, que comprova que fatos coincidentes acontecem de forma contumaz na vida de uma pessoa. Porém, o importante é entender a significação destes na dimensão psíquica do ser. Algo assim! E, juntamente com este raciocínio, também ressurge a questão da deificação de uma pessoa ordinária (no sentido de ser conforme aos costumes) que atravessa algum momento das nossas vidas e planta a semente da benevolência nas nossas intenções. Coincidência ou um anjo? Previamente, é importante lembrar que um anjo caído tem o mesmo poder de argumentação de um anjo que se mantém no plano divino e a benquerença pode ser uma estratégia para objetivos não tão nobres. A questão de discernir entre eles passa pela constatação se há cobiça nas suas intenções. Parece que às vezes vemos ou sentimos um anjo porque alguém atravessa alguns pensamentos e mostra harmonia com o que estes simbolizavam no próprio íntimo. Ocorre que não se conhece a pessoa que proferiu aquelas vozes ou escreveu aquelas palavras, nem como as palavras chegaram à sua boca ou teclado. Não se conhece suas vicissitudes e realizações. Nada além das linhas ou sons corroboram para a classificação endeusada, porque o que está feito mexe apenas com uma parcela de quem cada um é.  Ademais, eu tenho ciência de que isto não é suficiente para alguém se sentir anuído com os seus próprios sonhos. O mundo se estende além das telas de computadores ou de conversas casuais, nas quais seja possível ler amiúde os pensamentos alheios, por vezes repetitivos para que haja a formação de uma ligação de influência, por vezes inéditos. Ele está no cotidiano das pessoas com quem se convive, nos membros da família, nos objetos e mementos, dentro das casas, na solidão dos quartos.  Todos estes ambientes e pessoas formam o universo de cada um, com suas significações e prioridades. Um anjo pode cair. O que fascina pode ser ojerizado. Tudo dependerá do que construírmos como futuro, do que daquele momento de reflexão para frente será significante para a tomada de decisões. Se há uma boa vontade, ou há abnegação a tornar seu coração o influenciador das escolhas, provavelmente se viverá num futuro melhor, porque é do princípio existencial das pessoas de bem fazer e receber o ... bem.

E sobre as decisões, muito tempo pode ter se passado desde aquele momento em que alguém decidiu se encontrar para possibilitar a existência do amor, mas ainda não o encontrou. É importante notar que está escrito “um reencontro consigo mesmo”. Por que isto é importante? Quanto mais nos conhecemos, mais somos capazes de entender o que queremos, o que inclui as questões do coração. Indecisões são navalhas que cortam nosso futuro. Por outro lado, não existem certezas, apenas um conjunto de convicções a respeito do que nos machuca (principalmente) e do que nos arremete para um limbo quase extático, enlevado. Conheci pessoas maravilhosas que se desencantaram comigo. Conheci pessoas maravilhosas que me desencantaram. Mas as histórias de vida distintas, ambições e desejos nos fazem refletir que, no fundo, existem muitas semelhanças entre as almas que estão empenhadas em encontrar uma companhia. Mas esta é uma tarefa difícil, que se assemelha à busca insana da felicidade, por ser vizinha de intenção. Esta é uma tarefa frustrante quando os dias e as pessoas passam sem ficarem perenes na lembrança. Talvez não seja a hora, ou talvez nosso poder de sedução não seja o meio adequado para o que pode ser caracterizado como uma busca da alma gêmea. E eu me questiono agora sobre a possibilidade de existir uma alma tão afim que eu possa alcunhar como gêmea. O certo não seria gostar das diferenças? Não seria perceber que nelas é que cresceremos com indivíduos e amantes? Sempre repito a frase sobre quem ama, ama até o feio. Ama o que lhe é inconveniente. E se diverte com isto porque compreende que, acima de todas as coisas, está a capacidade e o presente divino do amar. Não falo no substantivo amor porque acredito que o verbo amar é o mais correto. É o exercício da vida, a ação de tornar significante nossa jornada até os derradeiros dias. Os encontros serão consequência das atitudes.

Neste contexto, anjo será aquela pessoa que alguém irá amar.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Tempo Fugidio (versão estendida)


A névoa atravessa as ruas e vielas desta cidade velha, de paredes apagadas pelo mesmo tempo que as descama para mostrá-las desnudadas em barro de tijolos.  Teias xadrezes que lentamente invadem as fachadas do ocaso, das pessoas abarrotadas de anos que se limitam a observar uma as outras. Janelas semicerradas escondem o vazio das esperanças. Janelas semiabertas mostram corpos engordados e flácidos, com olhares distantes e inexpressivos. Com lembranças turvadas pelo esquecimento. Com a letargia da derradeira espera por um dia ali estar somente uma janela semicerrada, sem personagem. Apenas um escuro que se derrama no desprezo das ruas.

Há um vazio na rua. Talvez pelo frio matinal ou por ser um feriado. Algo assim. Decerto ele não sabe, porque todos os dias são iguais. Como todas as suas roupas são iguais, os móveis são  sempre os mesmos, aquela rua, aquela sala e aquela cadeira, que o convida para sentar. Ele abandona a claridade, senta e acende um fósforo.

Na chama tênue e trepidante da vela sobre a mesa, que aquece aquele rosto próximo e uma combinação de memória, fatos ou factoides, saudade e tristeza, ele vagarosamente adormece. Alguns instantes se passam no vazio da sala e da mente. O cansaço abate fortemente aquele corpo desgastado pela dureza da vida e pela aspereza das pessoas que transitaram pelo seu passado. Deita lentamente o braço que segurava a cabeça e a encosta na madeira suja, engordurada por restos de refeições negligenciados. Parece que dorme, parece uma criança encolhida entre a cadeira e a mesa.

Ele desperta num tempo onde ela aceitou caminhar ao seu lado. Com um sorriso revelador de felicidade, um tanto malicioso, um tanto contido. O sim percorreu seu corpo e estampou evidências de obsequiosidade. Os tempos idos assim pediam e ele a cortejou como se mandava nos protocolos. Escreveu poesias apaixonadas, cantou serestas na sua janela, deu as mãos para amparar o caminhar de uma moça esperançosa, de traços delicados, que retribuía seus carinhos com o brilho nos olhos. Parecia que a eternidade brincava com seus desejos ao se flertarem com promessas perpétuas de companhia. E assim queriam até que ela desapareceu da sacada da casa onde sempre o esperava. Ela foi embora com suas promessas.

Quis o destino apartá-los. Ou eles mesmos consentiram as trapaças armadas pelas situações. Um dia, eles estavam apaixonados, noutro aquiescidos. Os parques por onde caminhavam não mais envolviam seus corpos no frescor do orvalho. Bem como o quarto não mais escondia seus arroubos. Então, os dias se estendiam no calendário como um varal sem roupas, sem cores pendidas para o futuro. Às vezes ele esticava a mão, talvez para atravessar uma rua, mas o calor daquela pele suave não o retribuía. Olhava para o lado e a falta dela fazia-o alucinar. Não suportava a ausência imposta daquela pessoa que amava, com toda a força de um coração que fora tão romântico, tão dela.

Não sobrou nenhum memento para ele lembrar. A foto, que guardava com tanto carinho na carteira, foi levada sem intenção em algum troco. O beijo no guardanapo se perdeu em algum lugar. A voz, o cheiro e o carinho foram com ela. O tempo fugidio e as décadas ficaram com ele.

Até que muitos anos depois, ela reapareceu num encontro casual, perto do portão de entrada da velha San Gimignano e da muvuca de gente que vinha de todo lado. Pararam um em frente ao outro e por alguns instantes nada disseram, apenas mostraram a surpresa nas feições dos seus rostos. Na pressa de passarem, algumas pessoas momentaneamente bloqueavam seus olhos. Mas era o mesmo olhar que conhecera, sem o brilho. Por mais diferente que o corpo dela fora transformado pelos anos, os belos olhos eram os mesmos. Inconfundíveis como seus próprios. Sentaram numa cafeteria, mas as palavras não abandonavam suas bocas como antes. Tinham dificuldade em mostrar os caminhos percorridos, os infortúnios passados, os segredos revelados. Os dizeres estavam mais atrelados ao presente, que não era comungado, e eles perceberam que eram outras pessoas. Mais amargas e solitárias pela decisão que já se perdeu na esperança de negá-la.  Não eram aqueles amantes, e nem mais seriam.

Subitamente, a ameaça do corpo cair no chão o acorda. Ele percebe que sonhara com fatos reais. Ou talvez apenas pensara, num estado de dormência. O sono da idade sempre confunde pensar com sonhar. Levantou-se e caminhou até a janela para contemplar as pessoas que começavam a passar na rua. Um senhor com um sobretudo preto, grisalho e de bengalas. Logo após um casal e gargalhadas  andavam errantes, para lá e para cá na calçada. A garota ainda olhou para ele quando passou em frente a janela. Algumas pessoas acenavam, a maioria ignorava. Mas ele ficou ali, imóvel e mudo por algumas horas. Talvez, no mais íntimo e escondido dos seus desejos, ele novamente gostaria de vê-la passar. Uma última vez. Para um último suspiro e um último adeus. Seria tudo que lhe resta possuir dela.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Tempo Fugidio


A névoa atravessa as ruas e vielas desta cidade velha, de paredes apagadas pelo mesmo tempo que as descama para mostrá-las desnudadas em barro de tijolos.  Teias xadrezes que lentamente invadem as fachadas do ocaso, das pessoas abarrotadas de anos que se limitam a observar uma as outras. Janelas semicerradas escondem o vazio das esperanças. Janelas semiabertas mostram corpos engordados e flácidos, com olhares distantes e inexpressivos. Com lembranças turvadas pelo esquecimento. Com a letargia da derradeira espera por um dia ali estar somente uma janela semicerrada, sem personagem. Apenas um escuro que se derrama no desprezo das ruas.

Na chama tênue e trepidante da vela na mesa, que aquece um rosto próximo e uma combinação de memória, fatos ou factoides, saudade e tristeza, ele vagarosamente adormece. Desperta num tempo onde ela aceitou caminhar ao seu lado. Com um sorriso revelador de felicidade, um tanto malicioso, um tanto contido. O sim percorreu seu corpo e estampou evidências de obsequiosidade. Os tempos idos assim pediam, e ele a cortejou como se mandava nos protocolos. Escreveu poesias apaixonadas, cantou serestas na sua janela, deu as mãos para amparar o caminhar de uma moça esperançosa, de traços delicados, que retribuía seus carinhos com o brilho nos olhos.

Quis o destino apartá-los. Ou eles mesmos consentiram as trapaças armadas pelas situações. Um dia, eles estavam apaixonados, noutro aquiescidos. Os parques por onde caminhavam não mais envolviam seus corpos no frescor do orvalho. Bem como o quarto não mais escondia seus arroubos. Então, os dias se estendiam no calendário como um varal sem roupas, sem cores pendidas para o futuro. Às vezes ele esticava a mão, talvez para atravessar uma rua, mas o calor daquela pele suave não o retribuía. Olhava para o lado e a falta dela fazia-o alucinar. Não suportava a ausência imposta daquela pessoa que amava, com toda a força de um coração que fora tão romântico, tão dela.  

Muitos anos depois, ela reapareceu num encontro casual, perto do portão de entrada da velha San Gimignano e da muvuca de gente que vinha de todo lado. Pararam um em frente ao outro e por alguns instantes nada disseram, apenas mostraram a surpresa nas feições dos seus rostos. Na pressa de passarem, algumas pessoas momentaneamente bloqueavam seus olhos. Mas era o mesmo olhar que conhecera, sem o brilho. Por mais diferente que o corpo dela fora transformado pelos anos, os belos olhos eram os mesmos. Inconfundíveis como seus próprios. Sentaram numa cafeteria, mas as palavras não abandonavam suas bocas como antes. Tinham dificuldade em mostrar os caminhos percorridos, os infortúnios passados, os segredos revelados. Os dizeres estavam mais atrelados ao presente, que não era comungado, e eles perceberam que eram outras pessoas. Mais amargas e solitárias pela decisão que já se perdeu na esperança de negá-la.  Não eram aqueles amantes, e nem mais seriam.

Ele acorda e percebe que sonhara com fatos reais. Ou talvez apenas pensara, num estado de dormência. O sono da idade sempre confunde pensar com sonhar. Caminhou até a janela para contemplar as pessoas que passam na rua. Talvez, no mais íntimo e escondido dos seus desejos, ele novamente gostaria de vê-la passar. Uma última vez. Para um último suspiro e um último adeus. Seria tudo que lhe resta possuir dela.

São Jorge - Saint George

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