sábado, 17 de janeiro de 2015

Beijo no Coração

Igreja Nuestra Señora del Pilar - Recoleta - Buenos Aires - Foto do Autor

Talvez não haja uma troca maior que o beijo. Talvez nem o sexo que, aliás, nada é sem o beijo. Sublime momento de desejo quando os meus lábios sensíveis tocarão os lábios daquela mulher que me olha ternamente, e transforma este instante em eternamente. Por um iminente tempo, em qualquer um dos seus segundos, seus olhos desviarão em falsa displicência. E retornarão para mim com mais brilho na alma, como se vestissem o lume do meu destino. Aproximo-me até sentir o cheiro e o doce hálito que, de tão doce, como criança quero me lambuzar. Como homem, quero vestir aqueles sentidos de sempre, pelo decorrer dos séculos, pelo desanuviar da paixão. Toco-a com as mãos nas costas e a aproximo lentamente até sermos um, num bailado rítmico, quase frenético, de faces, gostos, de ângulos por onde sinto o interior daquela que será ela. Daquela alma que será dela. Daquele tempo que será nosso.

E se eu pudesse beijar o coração? Obviamente não o posso sem os recursos da poesia, mas talvez não haja uma troca maior que este beijo.  Talvez nem o beijo que, aliás, nada é sem o coração. Sublime momento de amor quando a minha alma sensível tocará a alma daquela mulher que me vê definitivamente, e transforma este instante em infinitamente. Por um iminente tempo, em qualquer um dos seus segundos, seu corpo desviará em falsa displicência. E retornará para o meu lado com mais ardor na paixão, como se vestisse o mais profundo desejo no meu destino.  Aproximo-me até sentir o calor e o gosto daquela pele que, de tão quente, como velho quero me aquecer do frio da solidão. Como homem, quero vestir aqueles sentidos de alturas, pelos caminhos do universo, pelo desanuviar do amor.  Toco-a com as mãos nos sonhos e me aproximo lentamente até sermos um, num bailado harmônico, quase parado, de anseios, fogo, delírios por onde sinto o tudo daquela que será ela. Daquele homem que será dela. Daquele infinito que será nosso.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Aniquilamento (Annihilation)


Será que todos os sistemas filosóficos e divinos, que versam sobre uma separação entre consciência e corpo, construídos em todas as sociedades humanas, quase sem exceções, não seria uma resposta ao inconformismo resultante do aniquilamento? Conquanto seres que têm consciência de si, que elaboram uma construção de vida que deve se perenizar por décadas, não é terrível pensar que tudo será em vão? Pois, no final das contas, restará apenas algo em constante deterioração, algo que não reconhecemos como nós. Apenas algo! Então, a constatação da morte por uma suposta consciência de si não deveria irritá-la?

Ao contrário, Jorge se observa morto, em alguma cadeia em Palmas, no meio da sujeira asquerosa e catarrenta das jaulas brasileiras, quase imaculado dos odores e ruídos surdos e grotescos que barulham aquele ambiente dos últimos dias, indiferentes à vida ou à morte. Como deveria aquele fio de existência, quase relutante em se lançar na ausência profunda, pensar sobre si? Se este ato fosse um alívio, ele deveria apenas exclamar “constato que estou morto”? O derradeiro suspiro seria uma espécie de conforto derivado de frustrações e de uma personalidade abjeta e desprezível, embora ainda se observe algo de humano nos seus sentimentos, o que o incomoda nesta ambivalência entre o ser e o querer ser. Seria uma auto clemência para o que ele considerava uma inadequação, ou uma sociopatia que emergiu há poucos anos. Seria o final da sua fuga, não planejada, e que se fiou no limbo da paixão, entre os precipícios do desejo e o regozijo do ego. Uma empreitada derradeira para um beco sem saída.

A questão é quais sentimentos deveriam passar pela sua mente incorpórea? Pena, conforto, suscetibilidade, raiva, aquiescência, rancor, arrependimento, sofrimento, perda, graça, dádiva?


Is it possible that all divine and philosophical systems built in all human societies, almost without exception, that seeking to decipher the separation between mind and body; would not be the response to the dissatisfaction, resulting from annihilation? Although we are beings who have self-consciousness, that elaborate a building of life that must perpetuate itself for decades, is it terrible to think that everything will be in vain? So, ultimately, there will be only something in constant deterioration, something we do not recognize as ourselves. Just something! Whatever, the finding of death by a supposed self-awareness should not irritate it?

Instead, the character observes itself as a dead body, motionless in a prison of the Palmas city, lying in a filthy dirt Brazilian jail, surrounded by discolored catarrhs, almost immaculate from smells and grotesque noises that sound in that environment of latter-days, indifferent to life or death. How that limbo of existence, almost reluctant in jumping to a deep absence, should be thinking about itself? If this diving were a relief, should it only exclaim “I realize I’m dead”? The aftermost sigh would be a kind of cozy derived from frustrations and of an abject and unworthy personality, although it’s still possible to observe something as human in its feelings, what bothers it in this ambivalence between being and wanting to be. It would be a self-clemency to what he considered an inadequacy, or a sociopathic way, which emerged some years ago. It would be the final of his non planned runaway, that was hazarded on the limbos of the passion, between the precipices of desire and the overjoy of his ego. An ultimate endeavor to a dead end.

The question is what feelings should pass through his immaterial mind? Piety, comfort, susceptibility, anger, acquiescence, rancor, repentance, suffering, loss, grace, gift?

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Inferno (Hell)


Agora eu finalmente parei. Talvez seja melhor dizer que eu estacionei o meu desejo num olhar frio e inexpressivo, que apenas sonda velhas mesas e cadeiras nesta sala. Não sei exatamente o que procuro. Penso que eu quero ser encontrado por algo ou alguém que rejuvenesça meus anseios. Para que, numa espécie de transe, atravesse todos os corredores que me levariam até a felicidade, certamente longe daqui. Mas estou cercado por paredes mal pintadas, que se avolumam para cima de mim na medida em que a minha prostração se alastra. Os tentáculos viris do inferno tocam tudo neste ambiente, absorvem tudo o que se respira e deixam no ar o fétido aroma do mofo, que prolifera no desmazelo. Meu corpo não movimenta a vontade; meus pensamentos não recriam ilusões que abstraiam o negrume pintado na existência. Nauseabundo, apenas atravesso dias e dias, escorrendo pelo calendário até a incerteza de quando o tempo irá parar definitivamente isto que agora eu chamo de cotidiano.

No meio da parede oposta há uma janela. Há algo além. Há luz que insiste em atravessar a cortina amarelada e translúcida, borrando de tons âmbares tudo que está preso nesta sala. No meio da parede emoldura-se uma janela. Para trás do além existe uma distância que se estende pelo longe até onde eu desconheça quem são as pessoas e os lugares. Há luz sobre elas, que desmascaram as expressões não mais retorcidas por rugas de preocupações.

No meio do meu coração há uma janela.


Now I finally stopped. Maybe I should say that I parked my desire in a cold and expressionless stare, which only inspects old tables and chairs in this room. I do not know exactly what I'm looking for. I think I want to be found by someone or something that rejuvenates my longings. For, in a kind of trance, I go through all the corridors that lead me to happiness, certainly far from here. But I'm surrounded by badly painted walls, looming over me inasmuch as my prostration spreads. The virile tentacles of the hell touch everything in this environment, absorb everything that is breathable in the air and let this fetid smell of mold, which thrives in the slovenliness. My body does not move the will; my thoughts do not recreate illusions that abstract the darkness painted in existence. Nauseating, I just cross days and days, streaming down through the calendar until the uncertainty about when the time will finally stop this thing that now I call quotidian.

In the middle of the opposite wall there is a window. There is something beyond. There is a light that insists in goes through the yellowed and translucent curtain, which smudges tones of amber in everything that is stuck in this room. In the middle of the wall a window frames itself. Back of beyond there is a space which extends along the distance to where I unknown who are the people and the places. There is light over them, which unmasks the expressions no more twisted by wrinkles of worries.

In the middle of my heart there is a window.

(Esta é a prosa-projeto do primeiro poema do livro “Janelas da França” - This is the prose-project of the first poem of the book "Windows of France")

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Novo Projeto Poético - Janelas da França (New Poetic Project - Windows of the France)


Evidências e imaginação são motores da argumentação. Porém, diferentemente do cientista metódico, o escritor procura a sugestão. Nada cria em si, apenas na reflexão distorcida da sensibilidade. A ausência pode ser uma entidade da mesma forma que a abundância. A solidão pode ser um labirinto, ou a motivação da existência. Depende de como lemos o que se escreve. Depende de como a semântica cotidiana e coloquial influencia a compreensão. É claro que existem universalidades que transpassam séculos. É claro que existem genialidades que refreiam o tempo. O escritor está aqui como um canal do que sente, na captura semiológica do seu mundo, envolvendo-o numa prisão sem portas para o entendimento de que a alma é cativa da substância, mas feita de liberdade. E quando há o equilíbrio confesso das tendências do espírito, os minutos que giram os relógios são insignificantes.

Evidence and imagination are engines of argumentation. However, unlike the methodical scientist, the writer seeks the suggestion. He creates nothing in itself , only builds the images in the distorted reflection of sensitivity. The absence can be an entity, in the same way as the abundance. The loneliness can be a labyrinth or the motivation of existence.  It depends on how we read what is written. Depends on how the quotidian and colloquial semantic influences the insight. Of course there are universalities that trespass the centuries. Of course there are geniuses which refrain the time. The writer is here as a channel for what he feels, in semiological capture of his world, enfolding it in prison without doors to the understanding that the soul is captive of the substance, but made ​​of freedom. And when there is a avowed balance of trends in the mind, the minutes that spin in the clocks are insignificant.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Sobre o Fim da Inocência


Escreverei sobre assuntos que talvez não estejam tão bem ligados. O que pode ser até proposital, porque eu não consigo identificar em mim as razões pelas quais eu estou tão desconfortável nestes últimos anos. São pequenos fatos, eventos, palavras e ideias que incomodam. Aparentemente, elas não estão acopladas de forma a proporcionar uma teoria reveladora, se é que existe algo semelhante. Se existir, caberá aos sociólogos e antropólogos interessados comentar o que pensam sobre a foto que ilustra este texto. Eu não penso, apenas sinto algo que entope ainda mais a minha sinusite, agravada pelo ar de São Paulo.

Estes momentos vêm de todos os lugares. Estão na bisbilhotice de ouvir conversas alheias no restaurante; no ar rancoroso com que as pessoas comentam sobre as instituições; no consumo indiscriminado de crack pelas ruas desta metrópole; nas barbáries que se estendem pelas páginas dos jornais e revistas; na malversação de políticos que tanto prometeram há alguns anos;  na imensa miséria humana que chega aos nossos pés, saltitando nos sinais, dormindo ao relento, depositando fezes e seus cheiros pelos caminhos.

Mas desta vez a aparência decreta o fim da inocência. Não há mais sorrisos para adornar o semblante, nem vestígios daquela serenidade ocasionada por uns poucos sonhos, que ainda entorpeciam a mente. A sisudez da face e a escassez de expressões traduzem uma pessoa perdida dentro do labirinto dos seus desejos. Trancafiada pelas sequelas das suas tentativas de felicidade, já que associou a alegria da vida à satisfação das suas cobiças. Esqueceu-se de quem fez o plano e do quando se imaginou a existência de um futuro e de realizações. Esqueceu-se de quem era, ou não poderia supor por desconhecer o seu íntimo. Obviamente, neste caso a ignorância é o motor da vontade. Deve-se rumar para o conhecimento. Porém, o “como”, ou o método, é a ferramenta apenas dos sábios. E definitivamente hormônios não combinam com sabedoria. Quando mais jovem, mais somos impelidos pelos instintos e pela necessidade de suprir os vácuos emocionais que surgem desde que saímos das fronteiras da infância. Não se entende aquele corpo, não se conhece as muralhas psicológicas que foram construídas nos anos imberbes.  Mas naturalmente avançamos quase como cegos na velha estratégia de se errar para aprender. E sempre se erra muito neste processo quase que caótico. Encontram-se pessoas. Às vezes constituem-se famílias, têm-se os filhos e vive-se de uma maneira relativamente confortável até os dias derradeiros da velhice.  Assim, através de gerações o mecanismo social nos impele por algo que se entende tacitamente por felicidade. O que acontece desde os tempos tribais. Há algo semelhante nas aglomerações preponderantes neste mundo. Há algo que normatiza, mesmo que tacitamente, o que se deve fazer para ser feliz. Viver em sociedade é algo como acumular signos e representações, que montam conceitos e valores e nos levam a condutas e comportamentos.

Escrevendo desta maneira, parece que até defendo as consequências semióticas no plano do indivíduo. Porém, não é apenas uma questão de defesa, mas da existência em si de um campo de interpretações derivado exclusivamente da inserção em sociedade. A significação do que está escrito aqui, e em qualquer obra com heurísticas filosóficas ou névoas literárias, pressupõe o crivo social, em maior ou menor grau. O que é belo (ou aceito) neste bando que de forma contumaz denominamos como povo, ou até país, pode não ser tão belo para outras tribos ao redor do mundo. Salvo poucos esclarecidos, ninguém parece livre do sistema de valores da sua tribo. E no mundo globalizado a questão parece ainda mais complexa porque existem tribos dentro de tribos, intersecções culturais, dispersões geográficas de ideias e patetices justificadas para aglutinação de interesses. A política deveria ser o cimento de toda a mixórdia de interesses, mas os tempos inocentes já se foram. Temos nossos gostos direcionados pelos predadores sociais. E quanto mais alienados são os indivíduos, numa espécie de preguiça mental que gera a inércia e a inépcia social, mais conduzidos eles são. É uma lei antiga que eu conheço desde os tempos da minha infância: emburrecer para dominar.  O homem chegou à lua, lançou o mote da paz e amor dentro dos movimentos hippies, derrubou o muro de Berlin, ampliou o acesso às informações e comunicações, mas continua burro, sem capacidade analítica para se entender no contexto histórico. Portanto, todos seguem o que se entende por caminho da felicidade.

Obviamente há variações comportamentais e outras formas de valores sociais ou grupais cujo conhecimento não prescinde de um prévio contato com a Antropologia moderna. De qualquer maneira, é do próprio Claude Lévi-Strauss a citação “a humanidade está constantemente às voltas com dois processos contraditórios, um tende a criar um sistema unificado, enquanto o outro visa manter ou restaurar a diversificação”. Mas provavelmente isto foi num tempo anterior ao seu “Tristes Trópicos”.  O desencanto leva a mentalidade a assassinar seus conceitos. Alguns deles tão arraigados que extirpá-los da consciência demanda algo próximo à desilusão ou prostração. Decerto, quando apenas eliminamos, sem o preenchimento dos vácuos com a lucidez dos anos ou novos momentos de reflexão, tendemos a nos sentir também esvaziados. E é nesse momento que decretamos o fim da inocência. Nada novo virá apenas revestido pela elegância do pensamento, ou pela eloquência e simpatia de quem nos transporta. Nada novo virá de uma forma gratuita ou seduzida pela imagem que fazemos do pajé ou chefe tribal. Ou ainda daquele identificado como mestre, curador da imensa obra humana. Resumida em uns poucos livros, é claro!  Para estes exercerem o domínio existe a necessidade de se criar elementos tão antigos quanto aqueles que existiram no tempo em que os aglomerados humanos se estabilizaram ao inventarem a agricultura. Cria-se o céu, prometido àqueles que seguem alguma espécie de regramento, tácito ou não. Cria-se o inferno para aqueles que se desviam. Cria-se o protetor, que cuidará do repositório obscuro do dito conhecimento. Porém, quando se elimina o céu e o inferno, bem como consequência o processo maniqueísta de classificar as pessoas, elimina-se também o protetor. Assim estaremos muito sozinhos, mas livres. É algo parecido com o escolher da pílula vermelha em Matrix. Quebrar todos os vínculos que a inocência enraizou em nosso ânimo, abre a consciência para a dura verdade do existir.

É neste contexto que histórias vão surgir e montar uma literatura livre, além de obviamente não comercial.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Retalhos da Alma


Depois de tanto tempo, finalmente cá estou para divulgar a publicação do meu primeiro livro. Atualmente ele se encontra disponível em dois formatos. O primeiro é eletrônico e está disponível na Amazon para o Kindle. Para acessar o site, basta clicar no link abaixo:

Retalhos da Alma - Kindle

O segundo formato é o impresso, que pode ser acessado através do link abaixo:

Retalhos da Alma - Versão Impressa

Basicamente, o conteúdo do livro são os textos que estavam colocados neste blog quando era chamado de Fragmentos de Uma Paixão Desmedida. Esta é uma oportunidade para quem quiser reler aqueles textos, ou para pessoas que apreciem o meu estilo.

Um forte abraço.
Checon

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Mo Yan - Mudança


A rigor, qualquer um sempre guarda algumas superstições na vida cujas origens quase sempre são indetectáveis. Porém, recentemente eu soube que nunca deixo uma mala aberta porque ela se assemelha a um caixão de defunto. Por mais estranho que isto pareça, era assim que os meus ancestrais italianos consideravam, e é por isso que eu sempre fecho qualquer mala, numa tentativa de não deixar qualquer fantasma me assombrar, mesmo sem acreditar neles. Esta é uma espécie de herança que ultrapassa as explicações. O problema é que algumas destas informações herdadas, tanto da família, como daquelas imersas no coletivo, se transformam em preconceitos. Como no caso da China, que sempre imaginamos como composta por um povo oprimido e infeliz, que trabalha a fio e ganha salários medíocres.

Bem! O que se vê neste livro do Nobel Mo Yan é uma história de base autobiográfica, em cujo enredo nem me atrevo a decifrar o que é realidade dentro da ficção. Basicamente, num estilo limpo e atraente, narra uma história que tem como pano de fundo as "mudanças" ocorridas na China desde 1969. Para nós, longe dos acontecimentos que lá se passaram, parece improvável que existisse um empreendedor como He Zhiwu, cuja principal história é deliciosamente tratada no capítulo 7. Parece fora de cogitação aquela vida simples e alegre, com camponeses bem de vida, empresários e funcionários. O fato é que o livro é lindo e, salvo alguns pontos que estranhei (como o repentino aparecimento na história da esposa de Mo), me pareceu uma história bem tocada, que atendeu a encomenda do editor de Calcutá plenamente: retratar as mudanças ocorridas na China. Além disso, reforça a minha crença de que o ambiente muda, mas as pessoas são sempre as mesmas. Os sonhos são sempre parecidos, não importa em qual canto do planeta você esteja.

Fernanda Torres - Fim


No livro "The First Five Pages", de Noah Lukeman, é aconselhado atrair e seduzir o leitor (no caso o editor) nas primeiras cinco páginas do livro para que este não vá para a pilha de rejeição. Sol Stein também sugere algo semelhante. Assim, começarei pelo primeiro capítulo do trabalho de estreia da autora, que tem o título "Fim". Deste a leitura do livro "O Amante do Vulcão", da premiadíssima Susan Sontag, eu tenho a nítida impressão de que as escritoras somente conseguem enxergar e desenvolver dois tipos de personagens masculinos:  aqueles exageradamente romantizados (no caso do Amante), ou aquele tipo totalmente vazio de ideias que apenas toca a vida com gracejo e certa melancolia. A Fernanda não foge a esta regra, mas optou pelo segundo estereótipo, em todos os principais personagens masculinos apresentados.  Começa a história em primeira pessoa num ritmo frenético (com a técnica de frases curtas e mudanças abruptas no tempo da narrativa), muito rápido para a introdução de uma dezena de personagens em diversas linhas de tempo. A certa altura eu confundi quem era quem e se o protagonista estava a pé ou de carro. Estava de carro, mas no final fica a pé. Há também o conflito de querer emburrecer o coitado, mas citar um detalhe um tanto erudito. De qualquer maneira, é divertido, bem pesquisado e bem escrito.  Eu o colocaria na minha pilha de rejeição, mas pelas características positivas eu me permiti continuar. Espere-me um pouco mais, querida Herta Müller.

A narrativa passa para a terceira pessoa e um personagem do primeiro capítulo é pescado para continuar. As frases são maiores e mais introspectivas. Há uma elegância no escrever que caracteriza uma mulher, é claro. E pequenas histórias seguem numa sequência muita rápida, com linhas de tempo concomitantes, futuro e passado misturados, personagens brotando às dezenas, variação de discurso em primeira e terceira pessoas. Em um determinado ponto eu fiquei cansado de retornar páginas e mais páginas para tentar compreender onde eu estava. Tanto que lá pela página 100 eu cogitava desistir.

Porém, depois da metade do livro a história fica mais clara e, assim, também atraente. A confusão gerada pela aparente aleatoriedade entre a utilização da narrativa em primeira e terceira pessoas é desfeita quando se percebe que os protagonistas do "fim" falam em primeira pessoa. Isto é, quando cada um dos que vão falecer falam do dia derradeiro. Para o povaréu restante, a autora preferiu a onipresença intrusiva da terceira pessoa. Um recurso arriscado que ela preferiu correr.

Em todo caso, talvez mais pelo excesso de idas e vindas do texto, os personagens vão se revelando pouco a pouco. A confusão do tempo permanece, o excesso de alternância entre cenas e personagens também, mas num ritmo menor. A construção retalhada finalmente mostra que a história caracteriza o que eu poderia designar como tragédia carioca dos anos 70. É exagero ou restritivo apenas regionalizar como "carioca"? Talvez, mas a minha vida naqueles anos transcorreu entre São Paulo e Rio. Obviamente eu percebia que existiam nuanças específicas entre os impactos daqueles anos nas duas sociedades. Isto para mim justifica o "carioca", embora que o principal está no livro: o desmoronamento da família e a explosão da individualidade. Todas as consequências sociais da crise do petróleo de 1973 não foram mostradas. Não era a intenção da história (ou das histórias) a caracterização da metamorfose dos personagens (como no Mudança do Mo Yan), a não ser para a melancolia derradeira de vidas levadas ao extremo, e daqueles que as acompanharam.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Feliz 2015


O curioso desta época de festas é transformação que sempre ocorre com as pessoas: lembram-se dos sucessos e insucessos do ano que se finda, e planejam o porvir. É sempre um tempo de reflexão e esperança, onde se procura algum desacerto para corrigir e se empenha toda confiança nos dias que estão ali, após a virada do réveillon. A questão mais básica para se refletir é se fomos felizes neste ano que está literalmente com os dias contados. Felicidade, insumo básico do bem estar da vida, é uma espécie de conceito vago, abstrato e subjetivo. Sempre a desejamos para aqueles que moram em nosso coração, e às vezes até para aqueles com quem travamos as mais sérias bravatas. Tudo dependerá do quanto nossa alma é altruísta. Felicidade não se compra, embora tenhamos a impressão de que posses materiais a garantiriam. Felicidade não se dá, embora possamos inspirá-la com nossa alegria e positividade. Felicidade é quase como aquele sonho que se tem acordado, onde imagens que nos confortam transitam pela mente, trazendo um estado de bem estar sempre pressentido por entre as horas do cotidiano. Então devemos perguntar a nós mesmos, fomos felizes? Na aritmética imprecisa do nosso íntimo, o balanço das realizações sobre as vicissitudes pode redundar uma conclusão que não. Então devemos identificar o que nos afetou, mas de uma forma isenta de emoções impuras, aquelas que estão mais ligadas aos fatos de infortúnio do que ao que ocorre no nosso íntimo. Depois devemos planejar como evitar ou refutar os mecanismos pelos quais as situações incômodas ocorreram. Talvez isto seja simples, ou talvez não. Neste último caso, devemos nos apoiar naqueles ou naquilo que nos navegaria por mares mais calmos.

Por outro lado, a aritmética pode nos dizer que fomos felizes. Então, devemos cruzar os braços e esperar que a inércia nos traga outro ano feliz? Definitivamente não! A vida é deveras dinâmica para que esperemos pelas realizações. Precisamos nos inspirar, nos motivar, sonhar, viver uma vida digna de ser vivida. Podemos ajudar aqueles que estão ao nosso redor, ou mesmo mais longe. Podemos confortar os que não foram brindados por este sentimento gostoso de alegria cotidiana. Podemos lutar contra a injustiça, a corrupção, a malversação. Podemos tanto, mas tanto mesmo! Basta começarmos.

Feliz 2015.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Constatação


Não há nada neste quarto, nem uma sombra de quem já foi. Não há nada além de objetos que não representam nada além de funcionalidades. Mesmo naquele quadro da Toscana, pendurado quase no canto, não há ninguém que caminha pela relva. Nem a aquarela de Ouro Preto, nem o lenço do Azerbaijão, nem o perfil em relevo de Pablo Neruda dão mais as mãos para quem quer que seja. Assim, uma lágrima percorre meu rosto, mas não é de comiseração, nem de autopiedade. Eu diria que ela é apenas uma testemunha líquida da represa no meu peito, que estanca séculos de paixões. Na imensidão do meu coração, os dias passam escorregadios, sem rédeas que os levem para a felicidade. Um após o outro, são marcados com um xis de passado. Um após o outro levam os sonhos para o cemitério do esquecimento.

São Jorge - Saint George

  Imagem gerada pelo Midjourney São Jorge! Mostraste a coragem misericordiosa que me livrou do dragão que sempre carreguei em meu coração. I...