Antes eram os fragmentos das paixões. Agora os anos os tornaram mais contemplativos. Com o tempo, o pensamento adulto se transforma numa mistura de lógica e emoção, e a intensidade dos arroubos é entregue mais pela personalidade do que pelos hormônios.
By Swedish National Heritage Board from Sweden - A wintry walk in Humlegården Park, Stockholm, Sweden, No restrictions, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=51415416
Um passo após outro,
sigo ou persigo um caminho
que se deita indiferente no horizonte.
Arrasto os pés no silêncio de ser escutado,
que ecoa no vazio do destino.
Passo por passo,
passo por trilhas,
turvas pelo cansaço de um corpo lasso
e abandonado pela mente e pelo desejo.
Sigo ou persigo,
nem bem ao certo sei o que o passar quer.
Talvez queira ser só um passar,
ou talvez seja um atravessar.
Insisto e resisto no ir,
para não mais vir.
Carrego uma alma largada,
na bênção desejada pela redenção do querer,
na tortura de querer o que já se tem.
Carrego uma alma passada,
pelos anos que não mais voltam
e pela mente que a ignora.
Carrego uma alma lavada
pelas águas das lágrimas ressentidas,
que assistem e desistem no calar.
(inspirada a partir de uma semente deixada por Malu Carrara de Sambuy)
Agora estou só. Desliguei o celular e os sons que por vezes lembram uma existência. Eu poderia dizer que descanso a minha mente, mas minto. Não se descansa um mar revolto com mais ventos, não se acalma uma fera esfomeada. O que mais me incomoda é que meu grito não vai muito além destas paredes e as minhas palavras se enterram em si mesmas, com um frontispício de pretensa elegância para a surdez de ouvidos imaginários. Penso que os ditos abririam o meu coração, petrificado e maltratado, mas somente carregam palavras absortas da essência. Não ferem a pasmaceira incauta, não derrubam falsos horizontes, não denunciam uma solidão eterna. São apenas dizeres ditos a duras penas. São frases que não iluminam, apenas se obscurecem com o negrume de quem sou. Um pálido ponto negro dentro da luz da humanidade. Ofereço-te dor, pois é tudo que eu tenho. Nem lágrimas posso te dar porque a emoção foi embora, para outros braços abraçarem, sem o meu corpo despido de alma. Não posso te dar um futuro porque meu passado avança sobre ele e deixa os rastros de frustração. Não posso te dar o passado porque ele se encolhe no excesso de anos que se acumulam em calendários. Aquela criança sonhadora não está mais aqui. Não posso te dar o presente porque estou triste e não seria um presente, apenas um fardo que se carrega com lombo calejado. O que eu posso sinceramente dizer é um adeus. Uma singela despedida da pouca vida que tenho e que se posterga insistentemente pelos anos. Se estende indevidamente e se insinua entre o teu colo indesejoso e as pessoas ansiosas por ignorância. É! É possível que você também ignore tudo isso porque um “adeus” também não passa de uma palavra dita pelo mesmo ponto escuro. Este “adeus” talvez não seja uma despedida, porque quem aqui está já se foi há muito tempo na tua mente.
Ahora estoy solo. He apagado el teléfono y los sonidos que a veces recuerdan una existencia. Podría decir que descansar mi mente, pero miento. No se descansa un mar revuelto con más vientos, no se calma una fiera hambrienta. Lo que más me molesta es que mi grito no va mucho más allá de estas paredes y mis palabras se entierran en sí mismas, con un frontispicio de pretendida elegancia para la sordera de oídos imaginarios. Pienso que los dichos abrirían mi corazón, petrificado y maltratado, pero sólo cargan palabras absorbentes de la esencia. No hieren la pasmada incauta, no derriban falsos horizontes, no denuncian una soledad eterna. Son sólo dichos dichos a duras penas. Son frases que no iluminan, apenas se oscurecen con la negrura de quien soy. Un pálido punto negro dentro de la luz de la humanidad. Te ofrezco dolor, pues es todo lo que tengo. Ni lágrimas puedo darte porque la emoción se fue, para otros brazos abrazar, sin mi cuerpo desnudo de alma. No puedo darte un futuro porque mi pasado avanza sobre él y deja los rastros de frustración. No puedo darte el pasado porque se encoge en el exceso de años que se acumulan en calendarios. Aquel niño soñador ya no está aquí. No puedo darte el regalo porque estoy triste y no sería un regalo, sólo una carga que se carga con lomo calejado. Lo que puedo sinceramente decir es un adiós. Una sencilla despedida de la poca vida que tengo y que se posterga insistentemente por los años. Se extiende indebidamente y se insinúa entre tu cuello indeseado y las personas ansiosas por ignorancia. Es! Es posible que usted también ignore todo esto porque un "adiós" tampoco pasa de una palabra dicha por el mismo punto oscuro. Este "adiós" tal vez no sea una despedida, porque quien aquí está ya se ha ido desde hace mucho tiempo en tu mente.
Now I'm alone. I turned off the cell phone and the sounds that sometimes resemble an existence. I could say that I rest my mind, but I lie. No restless sea rests with more winds, a starving beast does not calm down. What bothers me the most is that my cry does not go far beyond these walls and my words burrow in on themselves, with a frontispiece of pretentious elegance for the deafness of imaginary ears. I think the sayings would open my heart, petrified and mistreated, but only carry words absorbed in the essence. They do not hurt the unsuspecting stench, they do not overturn false horizons, they do not denounce an eternal solitude. They are just said with great difficulty. These are sentences that do not illuminate, but are obscured by the blackness of who I am. A pale black spot within the light of humanity. I offer you pain, because that's all I have. No tears I can give you because the emotion has gone, for other arms to embrace, without my body naked of soul. I cannot give you a future because my past advances on it and leaves the traces of frustration. I cannot give you the past because it shrinks in the excess of years that accumulate in calendars. That dreamy child is no longer here. I cannot give you the gift because I'm sad and it would not be a gift, just a burden that is loaded with calloused loin. What I can honestly say is goodbye. A simple farewell of the little life that I have and that is persistently put off by the years. It stretches out unduly and creeps between your undesirable lap and the people anxious for ignorance. IT IS! You may also ignore all this because a "goodbye" is also just a word spoken by the same dark spot. This "goodbye" may not be a farewell, because who is here is long gone in your mind.
Na ausência do teu corpo, desenho tua silhueta na minha lembrança. Como um pretenso artista que engana a realidade ao ornar de sentimentos os traços que imagina, contorno lentamente teu semblante, que se apega num sorriso tênue e ligeiramente começado. Ergo a mão para tocar tua boca, nos mesmos lábios macios que murmuravam cantigas antigas, escavadas daquilo que nos sobra da infância. Nos mesmos lábios que beijo, desprovido do tempo que nos separa, e sinto o teu gosto falseado por uma mente que não se conforma por ter te perdido. Traio a realidade como alguém que foge para a loucura. A mesma loucura de perpetuá-la como se o possível fosse transgredido pelo querer, como se o querer desse a permissão para derrubar o inconcebível de abraçá-la. Avesso ao inevitável, eu posso perambular pelos teus caminhos na sina de persegui-la pelos sonhos. Pelos sonhos que se tem e pelos que se vive ao inserir tua presença na alucinação que é a existência. Pelos sonhos que se tem e pelos que insisto ao inserir teu corpo no desejo da minha persistência.
Na ausência do teu corpo, desenho tua silhueta na minha lembrança. Procuro na miragem aquela mulher que vagou nas minhas torturas, quando flagelado pela obstinação de amar eternamente o que é etéreo. O amor só tem significado na eternidade, mas se esvai com o escorrer de dias no calendário. Por vezes, vai-se na aluvião da querença pelo desdito, quando se açoita a personalidade em mórbida tristeza, sem que haja uma causa consciente. Julgamo-nos imerecidos pela dádiva da paixão porque podemos ter atração pela desgraça de nos punir, de irritar o nascimento com a morte, de maldizer o que somos por não gostarmos do nosso coração. Ah! Este trapaceiro! Que sempre escolhe o intocável e macula a beleza com seus anseios lúbricos, misturados numa pureza profunda que só se explica no encontro das almas, quando nos despimos da desumanidade e mostramos as entranhas da nossa personalidade. Às vezes há algo de belo lá, às vezes não. De qualquer forma, nem sempre gostamos do encanto do que se sente, mesmo quando ele se estende como um pôr do sol dentro do nosso peito. Basta um olhar testemunhado por uma lágrima. Pois a íris, quando imersa em emoção, é tão bela quanto todas as poesias criadas, todos os quadros pintados e todas as canções que nos cativam.
Na ausência do teu corpo, desenho tua silhueta em mim. Passo a protagonizá-la no enredo de me amar. Eterna e impunemente.
Eu poderia te pedir desculpas e dizer que nada nesta vida significa tanto para o meu coração quanto tua felicidade. Porém, as palavras não podem enterrar os sons do passado, nem inverter em pétalas a flor que murchou. Os dizeres estão tatuados no tempo, tanto quanto as feridas que não sangram. Tanto quanto a dor calada de gritos ou murmúrios. Aviltei tua história e não consegui fazer o mesmo na minha porque não tenho para onde ir e, quem perde o destino, perde também a origem. É claro que poderia argumentar sobre fatos e situações que ocasionaram minhas contravenções da mente, ou dizer que tudo não passou de alucinações, de casos incontroláveis de ciúmes no ocaso da maturidade. Você até poderia pensar em acreditar, condizer com toques sutis de carinho. Mas seria uma mentira para o teu íntimo que, no momento certo, ele vai te cobrar em uma profunda frustração. A imagem que temos um do outro é como uma porcelana delicada. Quando a quebramos, podemos até colar com a aquiescência, mas nunca assumirá a mesma forma na nossa percepção. Oras! Às favas a percepção pois temos o sexo e a diversão. Temos o álcool e as drogas! Em um suspiro digo que não temos nada além de enxergar a efêmera presença com o vulto da miragem e com as dimensões do querer. Meus olhos podem lacrimejar emoções perpetuadas em sons, ritmos e silêncio. Posso furtar a suavidade dos teus passos para divinizá-los em minha direção. Posso caminhar em nuvens de palavras, em adjetivos adotados pelo semblante da tua beleza. Mas serei apenas eu no final das contas.
By http://rebcenter-moscow.ru/ (English: own work Rebcenter-moscow)
[CC BY-SA 4.0 (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0)], via Wikimedia Commons
Ando, ando, ando! Passam-me janelas entreabertas e seus interiores parciais desacanhados. Passam-me pessoas incertas com seus olhares esgueirados, avultadas pelo meu débil e frágil corpo. Passam-me mendigos com seus olhares pedintes e suas farrapadas malcheirosas; destacados nas suas falsas negligências. A multidão incha na minha frente como um muro barulhado, como uma onda abraçada pelos edifícios sombrios. Num brusco repente, assusto-me! Não posso gritar, não posso chorar e trancafio minhas emoções dentro de um peito cujos sonhos foram penhorados, cujas glórias foram esquecidas e tudo o que me define está por ora malogrado. Cansado, procuro uma calçada mais vazia e sento-me na guia.
Chego à beira deste precipício que invento, dentre tantos que me lancei. A paisagem mágica na minha cabeça é aquele horizonte que não posso trilhar, porque cavei o abismo que ora me assombra. A virtude me cobre ao vestir-me de esperança, tão tênue quanto os hesitantes passos que aqui me trouxeram. Você está em algum lugar onde o meu olhar alcança, mas, quando penso em ti, uma névoa se forma. Estou dentro dela tanto quanto o abismo. Seguir para ti é saber que irei passar pelo despenhadeiro. Andar, andar, andar! Em algum momento cairei. Sombras me acompanham e, algumas vezes, procuro encontrar teu rosto nelas.
- Olá! Por que olhas para o longe?
Uma voz feminina me pergunta. Não posso dizer que o longe está ao lado. Ao mesmo tempo em que não é o sorriso dela, é um sorriso. Ao mesmo tempo em que não é o cândido olhar dela, é alguém a me ver. Não posso dizer que a distância, quiçá infinita, é não sentir no meu toque o rosto dela, embora tenha uma suave tez a me comover.
- Quanto é longe para ti?
Respondo com esta pergunta que, mesmo tendo um significado doloroso para mim, não pode ser entendida como tal. Assim, ela senta ao meu lado, abre uma brecha na névoa invisível que me cerca, e com uma improvável sabedoria diz:
- O longe é para onde quero ir. Atrás de nós, tudo que está perto me desespera.
Então ela desvia o rosto e também começa a contemplar a distância. Virei o meu para olhá-la e vi uma pele clara, que ornava um feitio ao mesmo tempo suave e marcante. Por aquelas poucas palavras, talvez apenas gentis, sem artifícios ou manhas, eu senti vontade de beijá-la. Não devido àquele quase formalismo que acontece quando nos aproximamos de alguém que conhecemos. Senti vontade de beijar suas palavras, na pele de onde elas vieram. Precisava dizer algo. Sentia-me compelido a preencher aquele momento um tanto estranho e insólito. Nunca nada semelhante houvera acontecido comigo e eu preciso parar de pensar. Precisava dar voz a alguma coisa. Pensei que iria balbuciar, mas, para minha surpresa, minha voz saiu tão firme que parecia ter uma convicção eterna.
- Quero andar!
Ela sorriu e virou novamente o rosto para mim, permitindo que eu contemplasse aquele azul claro de seus olhos, o que tornara o céu insignificante.
- Meu nome é Laura.
Sorri levemente e respondi dentro de uma mistura de serenidade e satisfação.
- Jorge.
Não alenta largar o meu nome sem verbos ou pronomes. Este laconismo traz-me o que está obscurecido no meu peito. Afugento pessoas e suas ideias com a falta de sorrisos e a concisão, o que me é penoso porque ao mesmo tempo pareço sentir falta delas. Meu paradoxo: amo e odeio a solidão. Quero a solidão porque não acredito que alguém possa amar isto que defino como um trapo de gente. Por outro lado, não quero a solidão porque acredito em uma improvável afinidade de almas. Sim! Este instante retorna à minha mente alguns versos do Pink Floyd que vadiaram na minha adolescência. Às vezes, quase que perfurando o vinil de tanto tocar. Às vezes em suaves e despretensiosos murmúrios cantados na ociosidade.
And if I show you my dark side
Will you still hold me tonight?
And if I open my heart to you
And show you my weak side
What would you do?
Luto contra o meu silêncio e as minhas dúvidas seculares e suavemente digo após um suspiro.
- Invento o mar. E continuo: - Invento o pôr do sol sobre ele.
- Invento as ondas e seu ruído constante e imortal.
- Invento as gaivotas (dissimuladamente olho para cima) e ouço seus gritos estridentes.
- A prisão da cidade não é suficiente para a minha liberdade, pois estarei onde eu quiser estar. – Sempre!
Percebo lágrimas no seu rosto e não compreendo os pensamentos que traduziram tão simples dizeres em evidente emoção. Talvez ela seja uma pessoa extremamente emotiva, ou passe por algum problema tão sério, que nocauteia a razão e seu comedimento necessário frente a um estranho. Talvez ela seja pisciana! Oras! Já começo a não logicar corretamente. Não acredito em horóscopos e imagino explicações estapafúrdias neste meu grau de desconhecimento. De fato, quem é ela? Por que está aqui? E principalmente por que está comovida? Entretanto, no meio das minhas indagações ela recomeça o diálogo.
- Milton Nascimento.
- Hã? Respondi e contorci a fisionomia para mostrar que não entendi.
- O que você disse: invento o mar. – Invento o sonhador em mim. – É a canção Cais do Milton. – Ela me toca profundamente e esteve comigo nos momentos em que conseguia sonhar.
Lentamente ela começa a murmurar a música e eu medito sobre aquela estranha coincidência. Amo Cais! É claro que inadvertidamente poderia ter roubado aquela frase da música. Há tantas canções que se prendem na minha mente, como tatuagens a lembrar de fases da vida pelas quais passei. Há tantos versos soltos no meu pensamento. Do Lorca, do Neruda, Maiakovski, mas os que saem da minha boca vêm das canções. Talvez porque eu pense que a vida é identificar nosso ritmo, e segui-lo. Que não somos nada além de acordes e sintonia. Como este dueto que hesita em se iniciar. Não! Espere! Agora virá o verso “invento o cais”, ao qual me antecipo:
- Venha!
- Para onde? Ela responde.
Levantei a minha mão e estiquei o indicador por sobre o cinza do asfalto. Apontei a incerteza citadina e disse:
By Chris from Poznań, Poland (Przychodzimy tylko raz...) [CC BY 2.0
(http://creativecommons.org/licenses/by/2.0)], via Wikimedia Commons
Não diga que estou vivo! Calo-me para o meu íntimo num desespero de fatos. Onde está minha vida? Onde deixei os vestígios de quem sou. Remonto-me em palavras abstratas, quase que fortuitas, e digo que vêm da inspiração. Acredito nesta minha mentira como quem acredita que vive no túmulo do cotidiano. Há a aparência de real no sorriso automático que deflagra minha presença, no colorido das roupas, nas conversas alegres e vazias, mas é só isto. Por dentro existe algo (que dizem ser uma alma) absolutamente morto, desprovido de paixões e sonhos. Há algo que vagueia pelos dias na mendicância de alguns beijos e abraços, de algumas vozes acalentadoras que deixam vestígios permanentes no coração. Entretanto, nada é perene, nada dura além de fagulhas de momentos. É um “nada” que deslumbra a morte na esquina dos anos que estão no porvir.
Os dias passam céleres, inclementes na tez que se enruga, nas paixões que não estão mais ao lado. Os dias escorrem pelo calendário e sombreiam o porvir, incertos de quando o negrume tomará conta do destino. Futuro é uma palavra escassa nas bocas senis, dita apenas nos entrementes de outrem, nas bocas esperançosas de alguém ou nos ditos ilusionados de ninguém. Os dias entremeiam um corpo frágil, curvado pelos anos inglórios, pela constatação da inutilidade da vida. Cobrem um corpo com o silêncio da insignificância, cada vez mais vultosa e imponente.
Caberia então abreviar o inevitável? Meu Deus! Como o óbvio se desvincula da constatação, numa afronta clara ao logicismo que pretensamente priorizamos. Há toda uma conspiração moral que dissocia o que é premente do adiável, como se fôssemos marionetes de presunções morais e absolutas, sem considerações sobre a insuficiência da vontade de viver. Um tiro! Bang! E tudo se reduziria ao que se é: nada. Não valeria a pena abraçar aquele corpo inerte, sem vida. Não valeria a pena beijar aqueles lábios secos e frios. A criança que lá estava, afiançadora do brilho dos olhos que advém dos sonhos, já se foi há tanto tempo. O fato é que também não valeria a pena abraçar e beijar aquele corpo antes do tiro. Ele é incapaz de acrescentar a paixão na vida de outrem, de despertar desejos reprimidos, de inspirar suspiros da mais profunda beleza que se esconde em todo coração. É apenas um corpo que se move, adiante de murmúrios de incômodos, de olhares desviados e de insimulações de tolo.
Não diga que estou vivo! A vontade foi sequestrada e o resgaste é a morte.
By Helgi Halldórsson from Reykjavík, Iceland (old man) [CC
BY-SA 2.0 (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0)], via Wikimedia
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Mais uma noite se deita a partir da minha janela. Vem sorrateira, quase que no repente. Quando não se atenta, vem com seu negrume invadir os corações solitários de uma cidade grande. Ouço alguns sons: embora não se calem, os ruídos ficam dóceis e o silêncio importuna. O manto escuro, quase silencioso, se avoluma, se espalha, infecta como numa epidemia de languidez até que, até que; acendo a luz para espantá-lo. Com suas paredes claras, minha casa agora me protege do escuro sombrio, que está lá fora. Então digo de súbito:
- Laura! Estamos no claro.
Meu coração se petrifica: há anos a Laura não está aqui. Poderia dizer que ela me abandonou, mas não foi pela sua vontade. A cidade a levou com sua vida e deixou-me o abrupto da sua ausência. Ela poderia e talvez quisesse ir bem mais tarde. Mas a convalescença a deitou naquela cama para que o perecer tirasse seu corpo. Laura! Laura! Não me abandone. Não faça da minha vida um vácuo de sentimentos. Não deixe a minha voz falar sozinha. Como gostaria que você voltasse, sentasse ali com aquele chá de frutas, que tanto apreciava, e me olhasse com seus olhinhos miúdos. Um tanto alegres, mesmo na súplica de lágrimas, mesmo nos momentos mais tristes. Ainda não disse todos os “eu te amo” que deveria dizer para ti. Ainda não acarinhei tua pele macia e clara tantas vezes quanto gostaria.
Sento-me e penso nos poucos dias que estive com ela. Dos outros tempos, apenas uma palavra me vem: desperdício! Gostaria de ter alcunhado os meus anos com outra palavra. Talvez algo mais ameno como ordinário, mas não na acepção desdenhosa que tanto ouvimos pelas ruas. Gostaria de ter sido apenas uma pessoa comum, dentre tantas que conhecemos. Alguém que nada inspira além de uma frase roubada de outrem num contato de whatsapp, adornado por uma face sorridente à frente de um momento de anos atrás. Destes mesmos anos que me levam para o ocaso, dentro de uma demência que mal posso medir ou sentir, porque sou eu quem me avalia dentro de uma conjunção de circunstâncias. Grito: o que fiz? Não importa! A pergunta mais correta é: o que deixei de fazer? Eu persisto na tentativa de me enganar com questões irrelevantes, faço-me perguntas insensatas, talvez oriundas de vestígios de autocomiseração. O que deixei de fazer? Deixei de amar? Se nem mais sei diferenciar verdade de ilusão, deixei de lutar por aquilo que acredito?
By Earle M.
Pilgrim (The Estate of Earle M. Pilgrim) [GFDL (http://www.gnu.org/copyleft/fdl.html) or CC BY-SA 4.0-3.0-2.5-2.0-1.0 (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0-3.0-2.5-2.0-1.0)], via Wikimedia
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A distância te empresta um vulto, que se encolhe a cada passo teu para o longe. A distância não se consome: derrama espaço entre nós e deita lágrimas no solo. Naquele corpo que se vai, eu me perenizei como homem. Agora ele me leva embora. Nada me deixa senão a lembrança de momentos que não se repetem mais. Nada me deixa senão uma saudade que acidamente corrói aquele amor refugiado no peito. Nada me deixa! Perdi a paixão, o amor e os vestígios de felicidade e agora sou apenas um mendigo emocional, com os trapos de abraços alheios e a sujeira das intenções. Estou espalhado pelas ruas e noites, nas vaginas insensíveis e no escuro da minha alma. É assim que intento sepultar tua saudade, com o veneno do meu desejo, demovido do afeto e da afeição.
Mas as sombras me revelam e cobrem as mentiras que conto para mim. Uma vitrine em falso transparente bloqueio, deixa o interior insurgir para mostrar meu rosto impreciso e pálido. Não parece com aquele que te teve nos braços, enovelado contigo. Recurvo sobre mim e aninho os olhos para buscar a improvável esmola do brilho dos teus. Olhar encharcado, fronte vincada, nenhum início de sorriso no canto da boca. Nenhuma palavra suspirada para praguejar da sorte. É apenas uma caricatura lúgubre, velando pelo passado e sem um destino para desenhar uma suavidade na feição. Não tenho mais refúgios para as minhas mentiras, só cavernas para me esconder da verdade que me tornei. Nestas sombras encontro o escuro dentro de mim.
Enveneno-me lentamente no avançar das horas, no contar dos dias e na eternidade dos anos. Enveneno-me com a melancolia de não tê-la em mim. E eu a tive aqui no meu corpo, como um lapso da eternidade, que se pausa a cada lembrança do teu sorriso. Sei que na distância repousa a esperança de submeter o vazio. Talvez um barulho de um carro, que se aguda ao passar, traga-te. Ou o destino me presenteie com outro vulto que, desta vez, se expanda na aproximação. Rompa as sombras, ilumine os caminhos e seja um antídoto par o veneno de perdê-la.
Deitado ou largado, olho para um teto que um dia foi branco. Que um dia te acolheu como refúgio de uma vida entortada por desacertos. Como ele, hoje eu apenas desboto as lembranças que buscam os contornos do teu rosto. O mesmo rosto que acolhi no meu peito, com seus mesmos suspiros e lágrimas.
Estou largado, ou deitado, e as manchas maculam meu teto e minha saudade.
Você disse que sempre me amaria, e o brilho nos teus olhos me fez acreditar. Podia ver a mulher dentro do corpo, lutando contra suas lamúrias passadas, seus homens tortos que entorpeciam a mente com promessas juradas e fingidas. Podia ver seu embate sincero. Podia sentir o calor de sonhos de um sol, a iluminar faces e caminhos. Mas, tudo se apagou e muito tempo se passou desde o som do adeus que libertaste dos teus lábios. E esta palavra martela minha consciência. Não são os sussurros apaixonados que se deitaram comigo nesta mesma cama. Não é o "querido" salpicado tantas vezes naqueles dias que escorreram no calendário para o passado. É apenas um som. Adeus!
Quando foste embora, deixaste tuas verdades no meu peito, e elas doíam latejantes numa realidade que não queria. Tuas palavras calavam as minhas. O meu “eu te amo” era tão solitário, mas era minha verdade e minha mentira. Podias me mentir também que eu acreditaria. Seus carinhos ásperos vasculhavam minha pele e pareciam não me tocar. Ouvia-te como sussurros e escolhia tuas melhores frases. Ignorava todo o mais. Odiava o vulto e amava o homem até que os dois se foram. Agora a poeira levantada pelos fatos turva o horizonte onde sonho. Talvez eu te veja como silhueta na lonjura do destino, ou talvez seja apenas uma sombra do homem que aqui estava. Queria apenas verter um amor, que supunha transbordar no meu coração, para te inundar com a esperança. Mas tu odiavas futuros. Não esperaria a maré para zarpar para um longe, qualquer um longe. Não consegues sofrer com as âncoras de passado, nem com mares revoltos. Apenas vai, vai e vai. Nada te prende, nem ao menos uma súplica sincera, mesmo que mentirosa. Tua voz ainda ecoa, como ditas por um fantasma que me rouba as alucinações.
Eu deveria estar só e cantar uma cantiga antiga e triste. Deveria remoer minhas frustrações silenciosamente e chorar minhas limitações. Consterna-me perceber que minha felicidade está na mentira de um mundo perfeito e que não sou feita para verdades.