sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Verde Insistente

Google Maps - Street View

Uma nova manhã me desperta. Bem como todas as manhãs que invadem com suas claridades a minha janela entreaberta, e picota pequenos pedaços de sol que fugiram pelas persianas até o chão do meu quarto. Em seu caminho iluminado pequenas poeiras flutuam, como os pássaros que prenunciam a manhã lá fora, uma algazarra de pios que alegram aquelas momentos  madrugadores. Junto com a preguiça de um corpo indolente pelas horas de sono, espero o despertador gritar com um barulho estridente e metálico. A fina xícara de porcelana, com decalques alemães que ilustram rosas bem detalhadas, tanto que até creio cheirá-las, me espera ao contrário na mesa da copa. A pequena colher também deita ao lado e a chaleira permanece impávida, na espera do café, cujo cheiro estará ao meu redor e me fará companhia, além de acrescentar mais um perfume nesta manhã e na pressa de sair.

A porta range e o gato malhado me olha e foge meio sem direção, apenas para longe. Alguns pássaros se assustam e ouço um aparvalhado bater de asas. Penso que surpreendi aquelas vidas que se alojaram na minha varanda e sigo em frente até ganhar a pequena calçada sob os meus pés. Uma calçada tão estreita que mal cabem duas pessoas lado a lado. Estou sozinha e sei que a única coisa que terei que fazer é esquivar das pessoas que vem em sentido contrário. Mas elas são raras porque não é a direção do metrô. Dou uma última olhada para o meu lar e para as árvores, que agora dançam com uma brisa que refresca este verão inclemente, e mostram um verde insistente, que se atreve a estar ali, que se insinua numa batalha sem fim contra o cinza asfáltico e o amarelo desbotado das casas que se perfilam até onde a distância alcança. Um verde persistente que se nega a mudar, que se recusa a fugir para lembrar que a natureza da vida está além dos pratas, brancos e pretos dos carros. Um verde que põe um cheiro de clorofila entre a fuligem dos diversos pós que flutuam sobre a cidade. Odores dos carros, das fábricas, do Tietê, dos cigarros, de borracha, de tudo que exala aquele cheiro de cidade, aquele cheiro de São Paulo.

Google Maps - Street View

Alguns passos depois, encontro a primeira alma do dia. Uma cabeça branca, que já não posso mais dizer grisalha. Os fios pretos já a abandonaram, aparentemente há muito tempo. Devido ao calor, ele veste uma camiseta sem mangas, bem vermelha, talvez para contrastar com a cidade e mostrá-lo para as pessoas que por ali passam. Ele me acompanha com o olhar até o meu caminhar passar o mais próximo possível dele. Não sei o seu nome, nem ao menos quem ele é, mas no meio daquele rosto vincado de rugas, neste momento, aparece um sorriso. O que me faz ouvir no seu silêncio: – Bom trabalho, filha! Nem sei se impressão ou realidade, de qualquer maneira o seu rosto assim me disse. Uma candura emoldurada por um pequeno barracão, pixado por aquelas letras horríveis e ininteligíveis das gangues.  Ao lado de uma mesa vermelha, com quatro cadeiras também vermelhas. Talvez logo mais ali se reúnam mais algumas cabeças branquinhas, e até grisalhas, e comentem assuntos idos de tempos idos. A cidade ainda os esconde nesta manhã.

Google Maps - Street View


Na sequência vem o borracheiro Tadeu. Como eu sei o seu nome? Não, eu nunca conversei com ele, apenas sei porque algumas vezes ele põe um cartaz: “Contrata-se borracheiro, falar com Tadeu”. Às vezes eu o vejo devorar algum sanduíche, sentado em três pneus empilhados. Outras vezes ele está montando um pneu, ou desmontando, ou testando a câmara na água suja de uma banheira antiga, também suja. Mas, na maioria das vezes ele está apenas a espera de um furo, sentado ou encostado na parede do seu minúsculo estabelecimento, que mais parece um corredor escuro do que uma borracharia. Raramente ele me olha, e mais raramente ainda ele me cumprimenta. É apenas mais um personagem que vive no meu caminho até o metrô.  Como os vendedores das lojas de roupas econômicas, ou os mecânicos daquelas oficinas de carro. Ou mesmo aqueles manobristas do estacionamento que está ao lado da estação, que guardam os carros das pessoas assustadas em enfrentar o trânsito do centro da cidade. Jovens que se divertem em passar raspando um carro pelo outro, condensando-os tanto para caberem mais. São personagens acidentais de uma cidade imensa, que me acompanham incógnitos todas as manhãs.

Google Maps - Street View

(ficção)

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Eu te amo - IV


"Roda mundo, roda-gigante. Roda-moinho, roda pião. O tempo rodou num instante. Nas voltas do meu coração"
Chico Buarque

Eu fui lançado para um mundo recriado da criação recriada de coisas que foram criadas há tempos imemoriais. Numa espécie de ciclo da fênix que morre em autocombustão e ressurge das cinzas, continuamente. Adoro o termo “on and on” do inglês: continuamente, ou ainda uma permissão para criar o “sempremente”. Permita-me? Não pude criar o “algodoar o céu” porque algodoar já está nos dicionários; e nem foi um presente de Guimarães Rosa, porque o termo existe desde 1556. Blá! Sempremente procuro por estes momentos de contemplação, em qualquer dobra de instante cotidiano. Isto alimenta a vida, insufla a vontade, combusta o desejo. Se eu sou apenas um parêntese para você, é porque as coisas ordinárias me avassalam e tornam os meus momentos insignificantes.  Quero estupeficá-la na descoberta, não de quem você é, mas do que você pode ser. Minhas palavras devem recriá-la para que não permaneçam próximas ao limbo do esquecimento. Elas devem mexê-la no inusitado sabor que está ali nos pensamentos que ainda não foram tocados pela sua compreensão. Naquelas imagens que ainda estão no parapeito em que você pode me observar. Um espelho? Talvez sim, ou talvez não. Se for, deve ser translúcido o suficiente para guardar o mistério divino do amor. Aquele que, se descoberto, desnuda apenas a paixão. Se opaco, deve sugerir algo que nunca poderia ser alcançado por estes cinco sentidos que traduzem o que nos cerca. Mas por um sexto, sétimo, nongentésimo sentido de observação oblíqua ao universo. O mesmo que remexe o coração sem uma explicação fidedigna de palavras, sem uma razão digna de explicações. Apenas mexe, remexe, balança, e leva todo o sopro da existência para a boca gritar: Eu te amo!

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Desespero


Pois bem! Rasguei todos os documentos. É pouco! Queimei todos os resquícios daquilo que dizem ser uma vida civilizada. Foi numa fogueira pequena, amarela, lá no quintal para que a fumaça enegrecida alcance a liberdade dos céus, e não encha os meus pulmões daquela fuligem insípida. A chama dançava com a brisa que conseguia vencer as paredes. Divertia-se em devorar papéis sem sentido para ela. Incendiava todos os registros de uma vida tormentosa, que fora fincada no desespero de passados cada vez mais tortuosos. Que nunca tomava a direção retilínea da felicidade. Há! Passados assados! Jocosa ironia para se libertar de tudo que enegreceu os sonhos de um jovem. Da mesma cor da fumaça arrancada daquelas folhas e plásticos. O negro que o manchou agora se espalha com o vento. Vai para lugares incertos e leva a incerteza do que fazer quando o fogo se apagar.

Mas, o que é aquilo que não se queimou? Que dizeres são estes que recusaram a virar brasa? Não é um documento, nem um diploma, nada que traga a lembrança de mim. É Hamlet? É Hamlet!

Acredito, sim, que penses o que dizes agora; mas aquilo que decidimos, não raro violamos. O propósito não passa de servo da memória, de nascer violento mas fraca validade. E que agora, como fruta verde, à árvore se agarra, mas, quando amadurecida, despenca sem chacoalho. Imprescindível é que nos esqueçamos de nos pagar a nós mesmos o que a nós é devido. Aquilo que a nós mesmos em paixão propomos, a paixão cessando, o propósito está perdido.

Toda uma vida é planejada com os auspícios da paixão. É ela o alimento da vontade, a energia da realização e a luz do caminho que ilumina os passos do espírito. Eu me apaixonei pela vida e me agarrei ao destino com a determinação inabalável da fé que tinha pela humanidade. Tinha também um coração bom e generoso, um falar pausado e manso, um jeito carinhoso de ser. E quase que toda esta ternura tocou o futuro com ares de inspiração. A mesma inspiração que, em algum momento de profunda expressão, pelas palavras e armas da paixão, fez conquistar a mais desejada das mulheres. E lá está ela na minha lembrança, na minha saudade. Bela como nunca. Vestida na minha imaginação e nua no meu desejo. Aquele caminhar pela minha vida até hoje me faz sentir o seu perfume, mesmo que ela esteja em Marte. E lá está ela de partida, pausada na porta do carro segundos antes de desaparecer. Ainda me olhou com uma expressão de cansaço ou tédio, não posso definir tão bem. Sei apenas que foi um último olhar que levou embora toda a minha paixão. E a minha vontade, a minha energia, a minha luz.

Meu propósito se perdeu e nunca mais o encontrei.

(ficção)

sábado, 24 de janeiro de 2015

Esvaziar os Armários

"1811 Kleiderschrank anagoria" by Anagoria - Own work. Licensed under CC BY 3.0 via Wikimedia Commons - http://commons.wikimedia.org/wiki/File:1811_Kleiderschrank_anagoria.JPG#mediaviewer/File:1811_Kleiderschrank_anagoria.JPG

Tinha o passado colecionado em fragmentos no armário das minhas lembranças. Peças que não se encaixavam na montagem de uma vida que, por vezes, foi baldia, e por vezes foi arrazoada pelas trilhas herdadas pela necessidade. De cada época guardava um pedaço de quem fui. Da adolescência veio um pequeno caderno azul de poesias, que contava e lamentava as incertezas que se deitavam no futuro. Tinha olhares fugidios, que a olhavam como uma musa inatingível, no véu das convicções amorosas que ainda não se firmaram no coração. Adorava-a como a um ícone e construía reinos na imaginação de uma vida possível apenas nos delírios de paixão. Sua voz não tinha sons, seus olhares eram frios como o de animais. Seu corpo era tenro e branco, com longos cabelos que deslizavam pelas costas desnudas. Seu toque era insensível e o seu não corroeu as entranhas do meu desejo por muito tempo.

Aquele não me levou para um sim incerto. E no final desta nova época eu tinha no armário os diplomas e certificados que não foram enfileirados na parede, uma casa imensa, carros e vários elementos e resquícios da imensa tristeza de estar ao lado de uma estranha. Um quadro de parede que eu não gostava; uma jarra decorativa que nada me trazia, além de eventualmente água fresca. Havia palavras que nem esbarravam no que eu era e eram repetidas como um macaco hidráulico na eternidade da existência. Não tinha cartas apaixonadas, guardanapos de jantares românticos, fotografia de beijos e estas travessuras que fazemos na torpe do encantamento. Não havia nada no meu peito e eu decidi não somente esvaziar os armários, mas também não ter mais armários.

Atravessei anos ao lado de pessoas passageiras. Quando alguma coisa, ali jogada na mesa ou na minha vida, pedia armário, eu lhe dava o lixo. Quando alguma palavra tentava entrar no meu íntimo, eu a expulsava. Quando alguma lembrança tentava se tatuar na minha vida, eu a esquecia. Conheci uma paixão que, do mesmo jeito que veio, se foi para além dos domínios da fascinação.  Conheci mais amigas que se deitavam, do que uma alma que pudesse gritar comigo pelos guetos que nos separam filosoficamente da multidão. Talvez ela (enfaticamente “ela”) não apareceu porque eu não lhe dei tempo, nem espaço, nem chances para mostrar seu olhar de menina. Talvez ela ainda não apareceu porque eu não lhe dei um armário para guardar seus vestígios de mulher.

(ficção)


quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O Muro

"Brickwall" by Arnold Paul - Own work (selbst erstelltes Foto). Licensed under CC BY-SA 2.5 via Wikimedia Commons - http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Brickwall.jpg#mediaviewer/File:Brickwall.jpg

Não sei se alguém que me lê viu, ou se emocionou até as lágrimas, com o filme “The Wall” do Pink Floyd. No final do filme existe uma animação que, no disco, diz respeito à canção “The Trial”. É o julgamento final da vida do protagonista Pink, mas um julgamento que não sabemos se diz respeito a uma autocensura, ou à decretação de não adequabilidade às convenções sociais. Na música de maior sucesso (“Another Brick In The Wall, pt. 1”) Pink já havia sido castigado e humilhado por “escrever um livro de poesias”. Agora, em “The Trial”, o desfecho se aproximava com o juiz, numa voz horripilante, decretando:

Was caught red-handed showing feelings,
showing feelings of an almost human nature.
This will not do

No final do julgamento ele é condenado, mas o muro que o isola neste lado da humanidade (com seus egoísmos, vaidade e louvação ao dinheiro) explode. Atrás dele, um mundo em ruínas, como após um bombardeio, mostra crianças brincando sobre escombros. Uma música quase que assobiada passa um sentimento de paz profunda, de harmonia, do regresso aos enternecimentos que nortearam o início da nossa jornada que se chama vida! Estaremos aqui por poucas dezenas de anos, e estaremos mais preocupados em garantir a próxima dezena do que fazer algo significativo para a existência da humanidade. Obviamente, de acordo com as regulações advindas de sistemas como a moral e ética (às vezes estabelecidos em bases preconceituosas) podemos até contribuir indiretamente, desde que princípios básicos de convivência social e fraternidade sejam efetivamente levados a cabo. Porém, há inteligência que se incomoda com as outras questões. E muito! Talvez se crie os muros e as muralhas que protejam aquele íntimo sensível e empático. O problema é que o mundo avassala de uma forma como nunca antes vista na história, com uma rapidez estúpida face às etapas de aquisição psicológica do novo. Tudo comandado em nome da tecnologia e da sociedade da informação. De fato, há um oceano de informações a nossa disposição, com dois centímetros de profundidade. E tudo invade como enchente o teu cotidiano. Hoje eu tenho a impressão que 1984 do Orwell foi apenas adiado para daqui a pouco. Entretanto, o meu coração está em paz, o que conflita com os que se passa ao meu redor. Aquele buliçoso e romântico homem que se inspirava em sonhos eternos, encontrou a calmaria da realização.

Assim, quando olho aquele muro intransponível na minha frente penso que tenho duas alternativas. A primeira delas é pôr ele abaixo com a força da minha retórica e convicção. Gritaria um “tear down the wall” para que todos os meus desejos, represados pelas décadas ou dezenas de anos, se libertassem das amarras psicológicas e filosóficas que os prenderam no meu peito. Que se livrassem das dúvidas que o meu sistema cognitivo ainda prescinde. Que se livrassem dos sonhos inúteis, dos anseios de pele que te levam para labirintos de vaidades, de regras vãs que impõem pensamentos e falsas certezas e finalmente daqueles vaticinadores de plantão que desgraçam qualquer escolha de futuro.

A segunda alternativa é mais simples e consiste em procurar por entre os guetos, deste lado do muro, aqueles em que ser o que sou é a regra. Aquele onde poderei saciar os meus desejos sem explosões nefastas, sem justificativas eloquentes, sem pressa e sem tempo.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Os Dias


Por quantas pessoas eu passo durante o meu dia? Cem, quinhentas, mil? São tantos sonhos, ambições, desejos e princípios que eu fico a imaginar como se pode ser tão sozinho no meio de uma cidade que é feita de pessoas. Com certeza há prédios, mas elas estão lá dentro. Certamente há carros, mas eles não andam por si só. E recentemente aconteceu-me algo que me pôs nesta reflexão. Ontem, enquanto tomava meu café perto do Pateo do Collegio, conheci a Meire. Conheci? Por dois anos eu cruzava com ela na rua. No começo, não nos olhávamos. Depois, corroborados pelo excesso de vezes, começamos a compartilhar alguns olhares, seguidos de cumprimentos sutis com a cabeça ou com o sorriso. Porém, somente ontem ficamos lado a lado no balcão de uma cafeteria. Comentei esta situação com ela e achamos graça. Por fim, nos apresentamos e conversamos um pouco. Coisas simples, sobre a coincidência, onde trabalhávamos e o que fazíamos. Despedimo-nos e seguimos nossos próprios caminhos. Levei comigo a impressão de ter conhecido uma simpática pessoa e pensei: quantas Meires estão entre as milhares de pessoas que passam pelo meu caminho?

Meios, ações e disponibilidade. A rigor, são os insumos da vontade, que permeia esta busca por uma pessoa que complementaria os dias. Disse “os dias”? Curioso! Este substantivo me veio ao léu depois de uma fração de momento. Poderia falar qualquer coisa, talvez “vida”, ou “destino”, mas falei “dias”. Cotidiano! E o vernáculo trouxe algo bem do fundo do meu íntimo. Estou feliz, mas ao olhar para o lado não consigo compartilhar estes momentos de serenidade com alguém. Meus dias são sempre desafiadores. Sempre há algo para refletir, pensar, montar estratégias, resolver, arbitrar, decidir. Mas há poucos eventos para contemplar. Como um olhar de menina, um beijo, um sonho. Ou aquela carícia que invade a alma e toca o coração, te vira pelo avesso e se perpetua pelos... dias. Esta brincadeira com o tempo literalmente não tem fim. Posso sonhar à noite e vivenciar o dia, como também eu posso vivenciar os sonhos pelas noites e pelos dias. O tempo da minha alma pode ser fugaz, fruto da paixão; pode ser etéreo, substanciado de alma; ou pode ser eterno, adornado pelo amor. Posso viver toda a minha vida em um minuto, e o porvir em séculos. Tudo dependerá da intensidade e devoção que dedicarei à minha causa e à minha busca, vestidas pelos tempos necessários para consumar a paz de ser amplamente feliz.

(ficção)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Tempo Passa


El tiempo pasa
Nos vamos poniendo viejos
Yo el amor
No lo reflejo como ayer

Estes são os primeiros versos da canção Años do Pablo Milanés. O tempo passa e nós vamos ficando velhos. E o amor não reflete como ontem. O nosso tempo pode ser sentido ou pressentido.  Pode existir em sensações que nos extasiam ou prostram, ou pressagiado quando se ignora os dias que passam lá fora, para além da janela da solidão. O tempo passa e nos carrega na carreira para o destino. Podemos tomar suas rédeas e evocar a direção que no horizonte suponhamos encontrar a felicidade. Ou podemos deixar o galope existir por si só, entregando-nos uma distância que deixamos para trás, sem nos ater aos que estão no caminho. Tudo é uma questão de decisão, que sempre se baseará em quem somos e no que queremos. O problema é que podemos ter uma ideia distorcida de quem somos, desfocada pela falta de interação, companheirismo e (por que não dizer?) amor.  E também podemos ser iludidos pelo que queremos quando o anseio for maior do que a temperança para alcançar o desejo. O querer muda com o ser, de uma forma profunda e arraigada à nossa alma. Mas, para algumas pessoas, o querer domina o ser. E quando isto acontece o tempo apenas passa no vazio de conquistas inúteis, na incompletude deixada no nosso coração.


domingo, 18 de janeiro de 2015

Alma de Borboleta


Todo jardim começa com uma história de amor, antes que qualquer árvore seja plantada ou um lago construído é preciso que eles tenham nascido dentro da alma. Quem não planta jardim por dentro, não planta jardins por fora e nem passeia por eles… e não haverá borboletas se a vida não passar por longas e silenciosas metamorfoses… 

Rubem Alves

Feito um castelo de cartas, deve-se cuidadosamente posicionar as ambições e anseios para que façam sentido no destino. Para que formem algo tão substancial quanto a existência. Porém, preciso nutrir os meus desejos de uma forma não aparvalhada. O desejo tem que transferir o equilíbrio entre o corpo e a alma. Se um peca por exageros, o outro pagará a conta. A paz cobrará a perenidade, e o corpo o fogo. Naquele momento em que houver comunhão entre os dois, terei as asas de borboleta e a determinação para romper o casulo.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Beijo no Coração

Igreja Nuestra Señora del Pilar - Recoleta - Buenos Aires - Foto do Autor

Talvez não haja uma troca maior que o beijo. Talvez nem o sexo que, aliás, nada é sem o beijo. Sublime momento de desejo quando os meus lábios sensíveis tocarão os lábios daquela mulher que me olha ternamente, e transforma este instante em eternamente. Por um iminente tempo, em qualquer um dos seus segundos, seus olhos desviarão em falsa displicência. E retornarão para mim com mais brilho na alma, como se vestissem o lume do meu destino. Aproximo-me até sentir o cheiro e o doce hálito que, de tão doce, como criança quero me lambuzar. Como homem, quero vestir aqueles sentidos de sempre, pelo decorrer dos séculos, pelo desanuviar da paixão. Toco-a com as mãos nas costas e a aproximo lentamente até sermos um, num bailado rítmico, quase frenético, de faces, gostos, de ângulos por onde sinto o interior daquela que será ela. Daquela alma que será dela. Daquele tempo que será nosso.

E se eu pudesse beijar o coração? Obviamente não o posso sem os recursos da poesia, mas talvez não haja uma troca maior que este beijo.  Talvez nem o beijo que, aliás, nada é sem o coração. Sublime momento de amor quando a minha alma sensível tocará a alma daquela mulher que me vê definitivamente, e transforma este instante em infinitamente. Por um iminente tempo, em qualquer um dos seus segundos, seu corpo desviará em falsa displicência. E retornará para o meu lado com mais ardor na paixão, como se vestisse o mais profundo desejo no meu destino.  Aproximo-me até sentir o calor e o gosto daquela pele que, de tão quente, como velho quero me aquecer do frio da solidão. Como homem, quero vestir aqueles sentidos de alturas, pelos caminhos do universo, pelo desanuviar do amor.  Toco-a com as mãos nos sonhos e me aproximo lentamente até sermos um, num bailado harmônico, quase parado, de anseios, fogo, delírios por onde sinto o tudo daquela que será ela. Daquele homem que será dela. Daquele infinito que será nosso.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Aniquilamento (Annihilation)


Será que todos os sistemas filosóficos e divinos, que versam sobre uma separação entre consciência e corpo, construídos em todas as sociedades humanas, quase sem exceções, não seria uma resposta ao inconformismo resultante do aniquilamento? Conquanto seres que têm consciência de si, que elaboram uma construção de vida que deve se perenizar por décadas, não é terrível pensar que tudo será em vão? Pois, no final das contas, restará apenas algo em constante deterioração, algo que não reconhecemos como nós. Apenas algo! Então, a constatação da morte por uma suposta consciência de si não deveria irritá-la?

Ao contrário, Jorge se observa morto, em alguma cadeia em Palmas, no meio da sujeira asquerosa e catarrenta das jaulas brasileiras, quase imaculado dos odores e ruídos surdos e grotescos que barulham aquele ambiente dos últimos dias, indiferentes à vida ou à morte. Como deveria aquele fio de existência, quase relutante em se lançar na ausência profunda, pensar sobre si? Se este ato fosse um alívio, ele deveria apenas exclamar “constato que estou morto”? O derradeiro suspiro seria uma espécie de conforto derivado de frustrações e de uma personalidade abjeta e desprezível, embora ainda se observe algo de humano nos seus sentimentos, o que o incomoda nesta ambivalência entre o ser e o querer ser. Seria uma auto clemência para o que ele considerava uma inadequação, ou uma sociopatia que emergiu há poucos anos. Seria o final da sua fuga, não planejada, e que se fiou no limbo da paixão, entre os precipícios do desejo e o regozijo do ego. Uma empreitada derradeira para um beco sem saída.

A questão é quais sentimentos deveriam passar pela sua mente incorpórea? Pena, conforto, suscetibilidade, raiva, aquiescência, rancor, arrependimento, sofrimento, perda, graça, dádiva?


Is it possible that all divine and philosophical systems built in all human societies, almost without exception, that seeking to decipher the separation between mind and body; would not be the response to the dissatisfaction, resulting from annihilation? Although we are beings who have self-consciousness, that elaborate a building of life that must perpetuate itself for decades, is it terrible to think that everything will be in vain? So, ultimately, there will be only something in constant deterioration, something we do not recognize as ourselves. Just something! Whatever, the finding of death by a supposed self-awareness should not irritate it?

Instead, the character observes itself as a dead body, motionless in a prison of the Palmas city, lying in a filthy dirt Brazilian jail, surrounded by discolored catarrhs, almost immaculate from smells and grotesque noises that sound in that environment of latter-days, indifferent to life or death. How that limbo of existence, almost reluctant in jumping to a deep absence, should be thinking about itself? If this diving were a relief, should it only exclaim “I realize I’m dead”? The aftermost sigh would be a kind of cozy derived from frustrations and of an abject and unworthy personality, although it’s still possible to observe something as human in its feelings, what bothers it in this ambivalence between being and wanting to be. It would be a self-clemency to what he considered an inadequacy, or a sociopathic way, which emerged some years ago. It would be the final of his non planned runaway, that was hazarded on the limbos of the passion, between the precipices of desire and the overjoy of his ego. An ultimate endeavor to a dead end.

The question is what feelings should pass through his immaterial mind? Piety, comfort, susceptibility, anger, acquiescence, rancor, repentance, suffering, loss, grace, gift?

São Jorge - Saint George

  Imagem gerada pelo Midjourney São Jorge! Mostraste a coragem misericordiosa que me livrou do dragão que sempre carreguei em meu coração. I...