segunda-feira, 18 de maio de 2015

A Carta de Moriarty



“For a long while now I’ve suspected that connection with another person, real connection, simply isn’t possible. I’m curious if you disagree, although I suspect you feel as I do in this, as you do in so many other things. So tell me; is it possible to truly know another person? Is it even a worthwhile pursuit?

Yours is the only opinion I’ll trust, the only point of view that holds even the faintest interest. I find my diversions, as I always do, but the days are long in this grey place.

I dearly hope you’ll write soon.

Ever yours, Jamie Moriarty”

Em toda a minha história, não há elementos que me permitam dizer que uma conexão real com alguém é possível, pelo menos não de forma perene. Há momentos que estamos profundamente ligados, feitos magnetos que quanto mais próximos, mais a atração nos compele para os braços e para os desejos insanos de usurpar a vida do outro como a nossa própria. Talvez a chave para compreendermos a conexão esteja exatamente neste quesito: o tempo. Não estou falando do eterno ou do etéreo, não estou aqui para prognosticar que a felicidade depende de um vínculo que nem ao menos conseguimos compreender. Mas pense: quando os anos avançam, o que sobra na lembrança? Talvez uma imagem dos tempos infantis e juvenis, mas eu me envergonho das experiências daqueles anos que se foram. Nem aquelas músicas que balançavam nossos corpos têm mais graça. Sinceramente eu me lembro do rosto do meu filho, recém-nascido e surpreendido no elevador a caminho do quarto.  Porém eu acredito que o espanto talvez tenha dado uma dimensão maior para aquele instante, estampando-o como tatuagem na minha memória. O que definitivamente eu me recordo era a imagem de te ver pintando no ateliê. O chão sujo pelas cores derramadas, imagens mal começadas em algumas telas, e o teu rosto lentamente virando para o meu lado. Era um quadro dentro de outro que você pintava. Inicialmente a pele macia das tuas bochechas. Logo o vermelho suave dos lábios começa a aparecer, os cílios, a mão que segurava o pincel e permanecia estática a poucos centímetros da tela. Por fim, seus olhos brilhantes me perceberam, e um sorriso se iniciou no rosto. Um sorriso que nenhuma palavra pode conter.

Quanto tempo durou? Um, dois ou três segundos? Ou todos os anos desde que te vi naquele momento, naquele lugar? Aquela conexão ainda me persegue. Mesmo quando estou só ou acompanhado de outros braços.

(https://www.youtube.com/watch?v=uztaIJBUrcc)

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Intocável


Um mendigo olhou profundamente nos meus olhos como se suplicando por uma mísera esmola, por uma mísera chance de lá continuar estatelado perto do meio-fio, alojado na penúria deste seu cotidiano. Olhou-me profundamente com ares de desespero, como se a vida dele dependesse daquele momento. A barba com uma suspeição de grisalha (o tempo a metamorfoseou num emaranhado amarronzado de fios) e o rosto vincado transformavam ainda mais a sua fisionomia triste, emprestando aspectos fúnebres à sua indigência. Uma espécie de estado de quase morte, que comprazia com o que supunha ser seu martírio.  Cortejava-me com o seu olhar, a sua expressão, e uma mão que se levantava daquela mistura de trapos e corpo. Não reagi e nem esbocei nenhum movimento, apenas mantive uma impavidez calculada. Não tinha nenhuma razão para ficar ali, mas também não tinha nada a minha espera. Nada que motivasse os meus passos.

Por alguns segundos ele hesitou, mas por fim abaixou o braço e continuou a me olhar. Talvez ainda mais profundamente, mas tirou qualquer resquício de aflição do semblante e passou a me observar com a frieza de um necrologista. Havia agora dois inanimados, um em frente ao outro. Ele saiu daquele personagem da rua e mostrou algo de humano, algo que transforma qualquer impressão que se tenha sobre miséria e as pessoas que vivem nela. Seria apenas um desprovimento? Aquela vida posta no meu caminho tem seus protocolos e princípios, que a orientam pelos dias. Provavelmente são diferentes dos meus. Não sei exatamente o quanto somos distintos. Certamente nos destinos, claramente nas ambições e, de forma obscura, não tenho certeza se o somos nas intenções. Não sei quem é ele, e nunca saberei. Ele não passa de um intocável, tanto pelas minhas mãos, quanto pela minha imaginação.

O sol a pino continuava a fustigar o cimento esbranquiçado da calçada, mas não retirava nenhum suor daquele rosto envelhecido, talvez menos idoso do que aparenta, talvez mais idoso do que mereceria. Naquele impasse de olhares, por um quase imperceptível movimento da boca, percebi que ele iria falar. Enfaticamente, com uma voz firme, eu disse:

- Não!

E pausadamente continuei:

- Não diga nada.

Pus a mão no bolso, peguei a carteira e percebi que não tinha nenhuma nota pequena. Retirei uma de R$ 50,00 e a dei para ele, com o devido cuidado para evitar que nossos dedos se tocassem. Aquilo o alimentaria por alguns dias, se é que este seria o uso do dinheiro. Ele sorriu e inclinou ligeiramente a cabeça numa forma de agradecimento, ou por um tempo que parecesse mais gratidão do que submissão. Nada disse então, apenas virei o corpo e caminhei pela mesma calçada com passos nem tão rápidos, nem tão lentos. Logo um casal de mãos dadas passou por mim, entretidos por uma conversa recheada de sorrisos. Depois veio uma mulher gorda, com cabelos bem longos, presos por uma espécie de elástico, inclinada para o lado devido ao esforço que tinha para quase arrastar uma sacola pesada (suponho), feita com um tecido forte, emborrachado, e com bolas vermelhas sobre um fundo branco. Não combinava com o vestido marrom dela. Ela não me olhou, nem a bela morena que rapidamente atravessou a rua. O único olhar que entrecruzou com o meu naquela manhã foi o do mendigo. Mas, quem era o mendigo?

Ainda ontem eu a olhei, com o pesar profundo da separação e olhos marejados por uma tristeza que queria irromper do meu peito. Calei na mente as palavras: Não! Não vá embora! Esperava dizê-las com o meu olhar, como uma súplica eterna, uma voz tardia que deveria assombrar sua decisão por uma mísera chance de permanecer naquele mundo, mais imaginado do que efetivamente criado, que eram nossas vidas. Por alguns instantes ela hesitou, mas virou as costas determinada, e se foi. Não havia razões pelas quais ela ficaria perto daquele corpo. O mesmo que a aquecia no frio e no calor da paixão, era agora também intocável. Tanto por ela, quanto por mim. A minhas palavras ficaram mais melancólicas, e o meu olhar tão inexpressivo quanto o de um cruel assassino. Os sorrisos se rareavam pelo cotidiano e a mente, outrora tão brilhante e criativa, se prendia no vazio da frustração. O que ela deixou não passa de um trapo e um corpo, que apenas sobrevive pelos intermináveis dias. Ou talvez não sobreviva, se aquele ônibus que rapidamente se aproxima, não conseguir frear.

(ficção)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Solidão.

"Asylbewerber03" by Andreas Bohnenstengel - http://andreasbohnenstengelarchiv.de/categories.php?cat_id=178. Licensed under CC BY-SA 3.0 via Wikimedia Commons - http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Asylbewerber03.jpg#mediaviewer/File:Asylbewerber03.jpg

Um olhar passeia pelo quarto vazio e percebe os mesmos móveis, que me acompanham há tantos anos. São as mesmas cores, os mesmos traços, os mesmos quadros. Parece que este que sou também me acompanha há muito tempo. Sou eu mesmo, sem nada a mais de relevante na personalidade, sem nada a menos porque não há muito o que perder. São as mesmas palavras, mas estão mais caladas, mais difíceis de encontrarem a liberdade para fora da boca; para fora do coração. Traduzem apenas um vasto silêncio que se estende até onde minha percepção investiga. Não há mais rastros daquela que por aqui passou. Os vestígios de alguém, que denunciariam talvez uma paixão, ou aquela incerteza confusa de sentimentos que constrói uma saudade, por ínfima que seja, já não podem mais ser vistos ou pressentidos. Decerto há um buraco no coração, há um buraco na vida e houve uma luz que se apagou para escurecer o meu cotidiano. A vida é realmente estranha. Nascemos sozinhos e passamos boa parte dela com nossos pais. Convivências distantes, que de certa forma se alheiam do processo de amadurecimento. Aí vem os amigos, que tagarelam, gracejam e zombam de tudo que pode ser colocado ou pensado nos dias. Vive-se como se com eles fôssemos herdar a eternidade. Depois ela aparece, rouba-te toda a significação da vida e te despoja de qualquer ambição que se possa caracterizar como própria. Entrega alguma coisa, de fato, mas logo leva tudo consigo. Por fim, novamente somos meninos, com a presença de alguém aqui e ali, cada vez mais rara, e sempre alheada do que você é. A única diferença é que há menos vozes, menos entusiasmo e menos vida.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Infante!

Por Credits: Pierre Holtz / UNICEF CAR / hdptcar.net at hdptcar [CC BY-SA 2.0 (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0)], undefined

Você quer dizer que sou um menino ou um soldado? Ou ambos? Se assim for, não tenho muito a dizer além de que não há nada mais perigoso do que um soldado-menino. A guerra não é uma brincadeira que pode ser levada com graça, como se estivesse numa roda de amigos e sugerisse: - vamos matar alguns bandidos? Tiros de fantasia que são disparados mais por aqueles hormônios que começam a ferver no sangue, do que por uma intenção malévola. Na realidade, se um tiro carregar uma vida para a morte, o arrependimento enterrará a consciência. O menino chafurdará toda a sua existência porvir na lama e no esgoto da compunção que cobrirá sua vida. Se sua mão tremulante tomar um rifle para que olhos ameninados vasculhem o que tombar, não será uma escolha digna de combate. Esta instância última de defesa ou ataque, campo de medidas extremas, desapego da vida, negação da humanidade, não combinam com o que aqueles poucos anos testemunharam. Mas há casos que crianças são vetustas nas desgraças. Quando o entorno respira e transpira violência e a infância é deformada pela crueldade. Nestes casos eu não seria um soldado-menino porque eu nunca teria sido um menino. Teria apenas vivido uma vida de velho, de vontade decrépita e sonhos que nunca nasceram.

Como? Menino-soldado? Nem pensar porque não é somente uma questão de ter insciência do que for feito, nem um desvio precoce de destino: é a própria antítese da infância. Rouba-se tudo: seu tempo, sua vida, seus familiares. Tudo que é estruturante, tudo que possibilitaria fornecer solidez aos seus sonhos. Entrega-lhe uma arma e uma crença, nada mais. Como tudo isto que vemos ao nosso redor, às vezes transvestido de ideologia, às vezes chama-se de fé, mas no fundo são conceitos manipulados por aqueles que se dizem sábios, que dizem guardar o repositório de conhecimentos difusos, cujas malhas de ligação de ideias são por vezes tão complexa que qualquer afirmação pode ulular delas. Qualquer mesmo! O que inclui aquelas de se criar inimigos (alguns dirão diabos, demônios, tinhosos, imperialismos e assim por diante), de se amplificar problemas, de turvar visões. O menino neste meio enxerga pelos olhos de outros porque nunca viu o que ele poderia ser.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Brilho nos Olhos

By Howie Le from San Jose, USA (eye full) [CC BY 2.0 (http://creativecommons.org/licenses/by/2.0)], via Wikimedia Commons

Este que está aqui aparece em palavras, que formam dizeres e tentam montar imagens em teu coração. São palavras que denunciam estes olhos que marejam, enquanto busco nos significados rastreados pela semântica, os significados da existência. São elementos que se equilibram entre a escuridão e a luz. E se me deixei levar pela luz para o mais longe que os meus dons permitem, o outro lado estava imerso no mais longe que a escuridão pode me prover. Onde encontrei o que há de mais obscuro na minha realidade e destino. Eu sempre me senti assim ao vagar pelos conhecimentos que a minha sede de curiosidade investigava. Eu sempre me senti assim ao abraçar as minhas obras e abandonar minha vida. Harmonia não é algo fácil quando se lida com extremos, e quem pode me trazer para a claridade é aquela que caminha mansa pela minha vida. Esquecerei os vestígios de discursos que te sugerem a inutilidade do cotidiano, e induzem um cansaço perene numa alma rodeada de sonhos. As palavras lançam meus sentidos na peregrinação de encontrar a paz do colo desta mulher. Cheirar aquela pele sedutora na procura de uma fragrância que desperte o desejo. Percorrê-la com o toque que avança pelas indiscrições veladas que a prudência contém, depondo as vestes e os receios de deitá-la no sempre. Saborear os lábios e largar os sonhos de outros caminhos para se perderem, soprados pelo hálito que invade o meu espírito e aquele homem que estava escondido do ordinarismo dos dias. Ouvi-la sussurrar palavras agora revestidas de uma fêmea, que abre as portas da paixão para gritar aqueles sons represados simplesmente por não terem alguém perto o suficiente do seu coração. Olhá-la com todo o brilho que reflete um amor, que lentamente nasce acompanhado do tempo que quer virar eternidade.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Verde Insistente

Google Maps - Street View

Uma nova manhã me desperta. Bem como todas as manhãs que invadem com suas claridades a minha janela entreaberta, e picota pequenos pedaços de sol que fugiram pelas persianas até o chão do meu quarto. Em seu caminho iluminado pequenas poeiras flutuam, como os pássaros que prenunciam a manhã lá fora, uma algazarra de pios que alegram aquelas momentos  madrugadores. Junto com a preguiça de um corpo indolente pelas horas de sono, espero o despertador gritar com um barulho estridente e metálico. A fina xícara de porcelana, com decalques alemães que ilustram rosas bem detalhadas, tanto que até creio cheirá-las, me espera ao contrário na mesa da copa. A pequena colher também deita ao lado e a chaleira permanece impávida, na espera do café, cujo cheiro estará ao meu redor e me fará companhia, além de acrescentar mais um perfume nesta manhã e na pressa de sair.

A porta range e o gato malhado me olha e foge meio sem direção, apenas para longe. Alguns pássaros se assustam e ouço um aparvalhado bater de asas. Penso que surpreendi aquelas vidas que se alojaram na minha varanda e sigo em frente até ganhar a pequena calçada sob os meus pés. Uma calçada tão estreita que mal cabem duas pessoas lado a lado. Estou sozinha e sei que a única coisa que terei que fazer é esquivar das pessoas que vem em sentido contrário. Mas elas são raras porque não é a direção do metrô. Dou uma última olhada para o meu lar e para as árvores, que agora dançam com uma brisa que refresca este verão inclemente, e mostram um verde insistente, que se atreve a estar ali, que se insinua numa batalha sem fim contra o cinza asfáltico e o amarelo desbotado das casas que se perfilam até onde a distância alcança. Um verde persistente que se nega a mudar, que se recusa a fugir para lembrar que a natureza da vida está além dos pratas, brancos e pretos dos carros. Um verde que põe um cheiro de clorofila entre a fuligem dos diversos pós que flutuam sobre a cidade. Odores dos carros, das fábricas, do Tietê, dos cigarros, de borracha, de tudo que exala aquele cheiro de cidade, aquele cheiro de São Paulo.

Google Maps - Street View

Alguns passos depois, encontro a primeira alma do dia. Uma cabeça branca, que já não posso mais dizer grisalha. Os fios pretos já a abandonaram, aparentemente há muito tempo. Devido ao calor, ele veste uma camiseta sem mangas, bem vermelha, talvez para contrastar com a cidade e mostrá-lo para as pessoas que por ali passam. Ele me acompanha com o olhar até o meu caminhar passar o mais próximo possível dele. Não sei o seu nome, nem ao menos quem ele é, mas no meio daquele rosto vincado de rugas, neste momento, aparece um sorriso. O que me faz ouvir no seu silêncio: – Bom trabalho, filha! Nem sei se impressão ou realidade, de qualquer maneira o seu rosto assim me disse. Uma candura emoldurada por um pequeno barracão, pixado por aquelas letras horríveis e ininteligíveis das gangues.  Ao lado de uma mesa vermelha, com quatro cadeiras também vermelhas. Talvez logo mais ali se reúnam mais algumas cabeças branquinhas, e até grisalhas, e comentem assuntos idos de tempos idos. A cidade ainda os esconde nesta manhã.

Google Maps - Street View


Na sequência vem o borracheiro Tadeu. Como eu sei o seu nome? Não, eu nunca conversei com ele, apenas sei porque algumas vezes ele põe um cartaz: “Contrata-se borracheiro, falar com Tadeu”. Às vezes eu o vejo devorar algum sanduíche, sentado em três pneus empilhados. Outras vezes ele está montando um pneu, ou desmontando, ou testando a câmara na água suja de uma banheira antiga, também suja. Mas, na maioria das vezes ele está apenas a espera de um furo, sentado ou encostado na parede do seu minúsculo estabelecimento, que mais parece um corredor escuro do que uma borracharia. Raramente ele me olha, e mais raramente ainda ele me cumprimenta. É apenas mais um personagem que vive no meu caminho até o metrô.  Como os vendedores das lojas de roupas econômicas, ou os mecânicos daquelas oficinas de carro. Ou mesmo aqueles manobristas do estacionamento que está ao lado da estação, que guardam os carros das pessoas assustadas em enfrentar o trânsito do centro da cidade. Jovens que se divertem em passar raspando um carro pelo outro, condensando-os tanto para caberem mais. São personagens acidentais de uma cidade imensa, que me acompanham incógnitos todas as manhãs.

Google Maps - Street View

(ficção)

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Eu te amo - IV


"Roda mundo, roda-gigante. Roda-moinho, roda pião. O tempo rodou num instante. Nas voltas do meu coração"
Chico Buarque

Eu fui lançado para um mundo recriado da criação recriada de coisas que foram criadas há tempos imemoriais. Numa espécie de ciclo da fênix que morre em autocombustão e ressurge das cinzas, continuamente. Adoro o termo “on and on” do inglês: continuamente, ou ainda uma permissão para criar o “sempremente”. Permita-me? Não pude criar o “algodoar o céu” porque algodoar já está nos dicionários; e nem foi um presente de Guimarães Rosa, porque o termo existe desde 1556. Blá! Sempremente procuro por estes momentos de contemplação, em qualquer dobra de instante cotidiano. Isto alimenta a vida, insufla a vontade, combusta o desejo. Se eu sou apenas um parêntese para você, é porque as coisas ordinárias me avassalam e tornam os meus momentos insignificantes.  Quero estupeficá-la na descoberta, não de quem você é, mas do que você pode ser. Minhas palavras devem recriá-la para que não permaneçam próximas ao limbo do esquecimento. Elas devem mexê-la no inusitado sabor que está ali nos pensamentos que ainda não foram tocados pela sua compreensão. Naquelas imagens que ainda estão no parapeito em que você pode me observar. Um espelho? Talvez sim, ou talvez não. Se for, deve ser translúcido o suficiente para guardar o mistério divino do amor. Aquele que, se descoberto, desnuda apenas a paixão. Se opaco, deve sugerir algo que nunca poderia ser alcançado por estes cinco sentidos que traduzem o que nos cerca. Mas por um sexto, sétimo, nongentésimo sentido de observação oblíqua ao universo. O mesmo que remexe o coração sem uma explicação fidedigna de palavras, sem uma razão digna de explicações. Apenas mexe, remexe, balança, e leva todo o sopro da existência para a boca gritar: Eu te amo!

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Desespero


Pois bem! Rasguei todos os documentos. É pouco! Queimei todos os resquícios daquilo que dizem ser uma vida civilizada. Foi numa fogueira pequena, amarela, lá no quintal para que a fumaça enegrecida alcance a liberdade dos céus, e não encha os meus pulmões daquela fuligem insípida. A chama dançava com a brisa que conseguia vencer as paredes. Divertia-se em devorar papéis sem sentido para ela. Incendiava todos os registros de uma vida tormentosa, que fora fincada no desespero de passados cada vez mais tortuosos. Que nunca tomava a direção retilínea da felicidade. Há! Passados assados! Jocosa ironia para se libertar de tudo que enegreceu os sonhos de um jovem. Da mesma cor da fumaça arrancada daquelas folhas e plásticos. O negro que o manchou agora se espalha com o vento. Vai para lugares incertos e leva a incerteza do que fazer quando o fogo se apagar.

Mas, o que é aquilo que não se queimou? Que dizeres são estes que recusaram a virar brasa? Não é um documento, nem um diploma, nada que traga a lembrança de mim. É Hamlet? É Hamlet!

Acredito, sim, que penses o que dizes agora; mas aquilo que decidimos, não raro violamos. O propósito não passa de servo da memória, de nascer violento mas fraca validade. E que agora, como fruta verde, à árvore se agarra, mas, quando amadurecida, despenca sem chacoalho. Imprescindível é que nos esqueçamos de nos pagar a nós mesmos o que a nós é devido. Aquilo que a nós mesmos em paixão propomos, a paixão cessando, o propósito está perdido.

Toda uma vida é planejada com os auspícios da paixão. É ela o alimento da vontade, a energia da realização e a luz do caminho que ilumina os passos do espírito. Eu me apaixonei pela vida e me agarrei ao destino com a determinação inabalável da fé que tinha pela humanidade. Tinha também um coração bom e generoso, um falar pausado e manso, um jeito carinhoso de ser. E quase que toda esta ternura tocou o futuro com ares de inspiração. A mesma inspiração que, em algum momento de profunda expressão, pelas palavras e armas da paixão, fez conquistar a mais desejada das mulheres. E lá está ela na minha lembrança, na minha saudade. Bela como nunca. Vestida na minha imaginação e nua no meu desejo. Aquele caminhar pela minha vida até hoje me faz sentir o seu perfume, mesmo que ela esteja em Marte. E lá está ela de partida, pausada na porta do carro segundos antes de desaparecer. Ainda me olhou com uma expressão de cansaço ou tédio, não posso definir tão bem. Sei apenas que foi um último olhar que levou embora toda a minha paixão. E a minha vontade, a minha energia, a minha luz.

Meu propósito se perdeu e nunca mais o encontrei.

(ficção)

sábado, 24 de janeiro de 2015

Esvaziar os Armários

"1811 Kleiderschrank anagoria" by Anagoria - Own work. Licensed under CC BY 3.0 via Wikimedia Commons - http://commons.wikimedia.org/wiki/File:1811_Kleiderschrank_anagoria.JPG#mediaviewer/File:1811_Kleiderschrank_anagoria.JPG

Tinha o passado colecionado em fragmentos no armário das minhas lembranças. Peças que não se encaixavam na montagem de uma vida que, por vezes, foi baldia, e por vezes foi arrazoada pelas trilhas herdadas pela necessidade. De cada época guardava um pedaço de quem fui. Da adolescência veio um pequeno caderno azul de poesias, que contava e lamentava as incertezas que se deitavam no futuro. Tinha olhares fugidios, que a olhavam como uma musa inatingível, no véu das convicções amorosas que ainda não se firmaram no coração. Adorava-a como a um ícone e construía reinos na imaginação de uma vida possível apenas nos delírios de paixão. Sua voz não tinha sons, seus olhares eram frios como o de animais. Seu corpo era tenro e branco, com longos cabelos que deslizavam pelas costas desnudas. Seu toque era insensível e o seu não corroeu as entranhas do meu desejo por muito tempo.

Aquele não me levou para um sim incerto. E no final desta nova época eu tinha no armário os diplomas e certificados que não foram enfileirados na parede, uma casa imensa, carros e vários elementos e resquícios da imensa tristeza de estar ao lado de uma estranha. Um quadro de parede que eu não gostava; uma jarra decorativa que nada me trazia, além de eventualmente água fresca. Havia palavras que nem esbarravam no que eu era e eram repetidas como um macaco hidráulico na eternidade da existência. Não tinha cartas apaixonadas, guardanapos de jantares românticos, fotografia de beijos e estas travessuras que fazemos na torpe do encantamento. Não havia nada no meu peito e eu decidi não somente esvaziar os armários, mas também não ter mais armários.

Atravessei anos ao lado de pessoas passageiras. Quando alguma coisa, ali jogada na mesa ou na minha vida, pedia armário, eu lhe dava o lixo. Quando alguma palavra tentava entrar no meu íntimo, eu a expulsava. Quando alguma lembrança tentava se tatuar na minha vida, eu a esquecia. Conheci uma paixão que, do mesmo jeito que veio, se foi para além dos domínios da fascinação.  Conheci mais amigas que se deitavam, do que uma alma que pudesse gritar comigo pelos guetos que nos separam filosoficamente da multidão. Talvez ela (enfaticamente “ela”) não apareceu porque eu não lhe dei tempo, nem espaço, nem chances para mostrar seu olhar de menina. Talvez ela ainda não apareceu porque eu não lhe dei um armário para guardar seus vestígios de mulher.

(ficção)


quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O Muro

"Brickwall" by Arnold Paul - Own work (selbst erstelltes Foto). Licensed under CC BY-SA 2.5 via Wikimedia Commons - http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Brickwall.jpg#mediaviewer/File:Brickwall.jpg

Não sei se alguém que me lê viu, ou se emocionou até as lágrimas, com o filme “The Wall” do Pink Floyd. No final do filme existe uma animação que, no disco, diz respeito à canção “The Trial”. É o julgamento final da vida do protagonista Pink, mas um julgamento que não sabemos se diz respeito a uma autocensura, ou à decretação de não adequabilidade às convenções sociais. Na música de maior sucesso (“Another Brick In The Wall, pt. 1”) Pink já havia sido castigado e humilhado por “escrever um livro de poesias”. Agora, em “The Trial”, o desfecho se aproximava com o juiz, numa voz horripilante, decretando:

Was caught red-handed showing feelings,
showing feelings of an almost human nature.
This will not do

No final do julgamento ele é condenado, mas o muro que o isola neste lado da humanidade (com seus egoísmos, vaidade e louvação ao dinheiro) explode. Atrás dele, um mundo em ruínas, como após um bombardeio, mostra crianças brincando sobre escombros. Uma música quase que assobiada passa um sentimento de paz profunda, de harmonia, do regresso aos enternecimentos que nortearam o início da nossa jornada que se chama vida! Estaremos aqui por poucas dezenas de anos, e estaremos mais preocupados em garantir a próxima dezena do que fazer algo significativo para a existência da humanidade. Obviamente, de acordo com as regulações advindas de sistemas como a moral e ética (às vezes estabelecidos em bases preconceituosas) podemos até contribuir indiretamente, desde que princípios básicos de convivência social e fraternidade sejam efetivamente levados a cabo. Porém, há inteligência que se incomoda com as outras questões. E muito! Talvez se crie os muros e as muralhas que protejam aquele íntimo sensível e empático. O problema é que o mundo avassala de uma forma como nunca antes vista na história, com uma rapidez estúpida face às etapas de aquisição psicológica do novo. Tudo comandado em nome da tecnologia e da sociedade da informação. De fato, há um oceano de informações a nossa disposição, com dois centímetros de profundidade. E tudo invade como enchente o teu cotidiano. Hoje eu tenho a impressão que 1984 do Orwell foi apenas adiado para daqui a pouco. Entretanto, o meu coração está em paz, o que conflita com os que se passa ao meu redor. Aquele buliçoso e romântico homem que se inspirava em sonhos eternos, encontrou a calmaria da realização.

Assim, quando olho aquele muro intransponível na minha frente penso que tenho duas alternativas. A primeira delas é pôr ele abaixo com a força da minha retórica e convicção. Gritaria um “tear down the wall” para que todos os meus desejos, represados pelas décadas ou dezenas de anos, se libertassem das amarras psicológicas e filosóficas que os prenderam no meu peito. Que se livrassem das dúvidas que o meu sistema cognitivo ainda prescinde. Que se livrassem dos sonhos inúteis, dos anseios de pele que te levam para labirintos de vaidades, de regras vãs que impõem pensamentos e falsas certezas e finalmente daqueles vaticinadores de plantão que desgraçam qualquer escolha de futuro.

A segunda alternativa é mais simples e consiste em procurar por entre os guetos, deste lado do muro, aqueles em que ser o que sou é a regra. Aquele onde poderei saciar os meus desejos sem explosões nefastas, sem justificativas eloquentes, sem pressa e sem tempo.

São Jorge - Saint George

  Imagem gerada pelo Midjourney São Jorge! Mostraste a coragem misericordiosa que me livrou do dragão que sempre carreguei em meu coração. I...