Gerada pelo DALL-E
Antes eram os fragmentos das paixões. Agora os anos os tornaram mais contemplativos. Com o tempo, o pensamento adulto se transforma numa mistura de lógica e emoção, e a intensidade dos arroubos é entregue mais pela personalidade do que pelos hormônios.
domingo, 18 de outubro de 2015
Arwen
sábado, 29 de agosto de 2015
Fatos
Justine Dieuhl - Toulouse-Lautrec - Museu D'Orsay - Paris (foto do autor - 2008)
Eu quero me lembrar do teu rosto,
Já tão apagado pela espera destes anos.
Eras uma menina dentro de um corpo de mulher,
É o que me recordo.
Caminhavas com passos delicados,
E pisoteavas matreira a minha sombra.
Abrias um sorriso travesso,
Tão indócil que suas formas
São as que mais firmes estão no meu pensamento.
Eu quero despi-la de qualquer desgosto,
Que porventura fosse criado pela minha conduta.
A mágoa dos fatos mancha o eterno.
E o futuro se bifurca na indolência
É o que está na minha memória:
Um rosto e um sorriso
Enevoados pelo tempo e pelo remorso.
Uma mulher que perdeu a menina,
E passos que a levaram.
Quero fugir do que me foi imposto,
Já tão estampado quanto uma tatuagem.
Eras uma mulher dentro de uma menina.
É o que ficou nas minhas alucinações.
Corrias com passos acelerados,
Para escapar das minhas sobras.
Fechavas aquele sorriso moleque,
E emprestavas formas tristes ao rosto
Que lacrimejava teu abatimento.
Eu quero vesti-la com o meu gosto,
Que a presentearia após esta minha luta.
A certeza dos fatos a aqueceria no inverno
E o futuro convergiria na tua clemência.
Tu sairias da minha memória:
Um corpo e uma mulher,
Resgatados do tempo e do arrependimento.
Uma pessoa que ganhou a menina,
E passos que a trouxeram.
sexta-feira, 21 de agosto de 2015
Olhos
Olhos! Também tenho olhos. Registro que tenho dois em bom estado de funcionamento, que veem o mundo sobre vários prismas, alguns até além da tão desejada simplicidade. Em alguns momentos, ser simples me dá tédio, em outros eu gosto. Havia (ou há) uma música do Raul Seixas que aclamava: “eu prefiro ser esta metamorfose ambulante do que ter aquelas velhas opiniões formadas sobre tudo”. Alma irrequieta? Decerto. Sonhador? Talvez... não. Não sonho mais, não durmo mais. E antes que se pense em aspectos vampirescos, eu digo que estou apenas desperto, observando, vendo pessoas passarem com suas vaidades na passarela. Corpos objetos de uma sociedade que abriga e rechaça. Vejo-as e não as desejo. Porém, algumas vezes, uma delas sai da linha e apresenta um comportamento inusitado. A máscara cai e ela se revela. São estes momentos que eu espreito. São aquelas ocasiões que displicente ou involuntariamente o ser desmura todo um mecanismo de obliteração do coração. É claro que eu poderia furar qualquer muro com a retórica da paixão. Ei! É uma analogia boa: eu criaria um buraco com as artimanhas do meu coração, mas o muro ainda estaria lá. Não conseguiria ver tudo, nem ao menos a dimensão do que tem do outro lado. Ao passo que se uma pessoa me atira o tijolo do seu muro, eu sei que ela quer ajuda para derrubá-lo. Então eu a olho, com uma mirada terna. Digo com a minha visão que sou da paz. Quero tudo derrubar, mas com consentimento.
Jaz no meu passado a angústia do tempo. Aquilo que tudo impulsiona, que tudo motiva pela insanidade da urgência. Desta forma, posso ser livre, como somente uma alma desperta pode ser. Já não mais sonho, pois estou acordado para o destino. Ele não mais me carrega, apenas me empurra.
segunda-feira, 17 de agosto de 2015
A Trilha
By böhringer friedrich (Own work) [CC BY-SA 2.5 (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.5)], via Wikimedia Commons
A trilha leva os meus passos e há algo de indolente que se esvai pelo caminho. Diria que é o meu corpo, rechaçado do convívio por um absoluto e imenso cansaço. Diria que é o meu ânimo, alquebrado pelas frustrações eternas, por aquela mulher que varreu todos os vestígios de felicidade. Um passo após o outro e a terra não me consome, mas as lembranças que vertem pelas lágrimas assolam a paisagem. Ela está lá estática e muda. Uma imagem de um rosto claro, com seus olhos cor de mel, a disputar matizes com o pôr do sol no infindo horizonte do destino. Inalcançável pelas lamúrias, pelas súplicas de paixão que um dia foram ignoradas. Um passo após o outro. Não me importa mais para onde ir ou onde chegarei. Qualquer lugar é qualquer lugar. Não haverá remanso e não haverá paz que afaste esta tormenta de não mais vê-la, a não ser pelas miragens que zombam pelo cotidiano.
Há algo de eterno no meu passado. Os passos caminham por si só, como se ignorassem a minha vontade de me perder. Não há mais um futuro para se sonhar, não há mais um objetivo por que lutar. Apenas um caminho do qual não se pode desviar. O abrigo para esquecer do mundo, é o próprio caminhar.
segunda-feira, 18 de maio de 2015
A Carta de Moriarty
“For a long while now I’ve suspected that connection with another person, real connection, simply isn’t possible. I’m curious if you disagree, although I suspect you feel as I do in this, as you do in so many other things. So tell me; is it possible to truly know another person? Is it even a worthwhile pursuit?
Yours is the only opinion I’ll trust, the only point of view that holds even the faintest interest. I find my diversions, as I always do, but the days are long in this grey place.
I dearly hope you’ll write soon.
Ever yours, Jamie Moriarty”
Em toda a minha história, não há elementos que me permitam dizer que uma conexão real com alguém é possível, pelo menos não de forma perene. Há momentos que estamos profundamente ligados, feitos magnetos que quanto mais próximos, mais a atração nos compele para os braços e para os desejos insanos de usurpar a vida do outro como a nossa própria. Talvez a chave para compreendermos a conexão esteja exatamente neste quesito: o tempo. Não estou falando do eterno ou do etéreo, não estou aqui para prognosticar que a felicidade depende de um vínculo que nem ao menos conseguimos compreender. Mas pense: quando os anos avançam, o que sobra na lembrança? Talvez uma imagem dos tempos infantis e juvenis, mas eu me envergonho das experiências daqueles anos que se foram. Nem aquelas músicas que balançavam nossos corpos têm mais graça. Sinceramente eu me lembro do rosto do meu filho, recém-nascido e surpreendido no elevador a caminho do quarto. Porém eu acredito que o espanto talvez tenha dado uma dimensão maior para aquele instante, estampando-o como tatuagem na minha memória. O que definitivamente eu me recordo era a imagem de te ver pintando no ateliê. O chão sujo pelas cores derramadas, imagens mal começadas em algumas telas, e o teu rosto lentamente virando para o meu lado. Era um quadro dentro de outro que você pintava. Inicialmente a pele macia das tuas bochechas. Logo o vermelho suave dos lábios começa a aparecer, os cílios, a mão que segurava o pincel e permanecia estática a poucos centímetros da tela. Por fim, seus olhos brilhantes me perceberam, e um sorriso se iniciou no rosto. Um sorriso que nenhuma palavra pode conter.
Quanto tempo durou? Um, dois ou três segundos? Ou todos os anos desde que te vi naquele momento, naquele lugar? Aquela conexão ainda me persegue. Mesmo quando estou só ou acompanhado de outros braços.
(https://www.youtube.com/watch?v=uztaIJBUrcc)
terça-feira, 17 de fevereiro de 2015
Intocável
Um mendigo olhou profundamente nos meus olhos como se suplicando por uma mísera esmola, por uma mísera chance de lá continuar estatelado perto do meio-fio, alojado na penúria deste seu cotidiano. Olhou-me profundamente com ares de desespero, como se a vida dele dependesse daquele momento. A barba com uma suspeição de grisalha (o tempo a metamorfoseou num emaranhado amarronzado de fios) e o rosto vincado transformavam ainda mais a sua fisionomia triste, emprestando aspectos fúnebres à sua indigência. Uma espécie de estado de quase morte, que comprazia com o que supunha ser seu martírio. Cortejava-me com o seu olhar, a sua expressão, e uma mão que se levantava daquela mistura de trapos e corpo. Não reagi e nem esbocei nenhum movimento, apenas mantive uma impavidez calculada. Não tinha nenhuma razão para ficar ali, mas também não tinha nada a minha espera. Nada que motivasse os meus passos.
Por alguns segundos ele hesitou, mas por fim abaixou o braço e continuou a me olhar. Talvez ainda mais profundamente, mas tirou qualquer resquício de aflição do semblante e passou a me observar com a frieza de um necrologista. Havia agora dois inanimados, um em frente ao outro. Ele saiu daquele personagem da rua e mostrou algo de humano, algo que transforma qualquer impressão que se tenha sobre miséria e as pessoas que vivem nela. Seria apenas um desprovimento? Aquela vida posta no meu caminho tem seus protocolos e princípios, que a orientam pelos dias. Provavelmente são diferentes dos meus. Não sei exatamente o quanto somos distintos. Certamente nos destinos, claramente nas ambições e, de forma obscura, não tenho certeza se o somos nas intenções. Não sei quem é ele, e nunca saberei. Ele não passa de um intocável, tanto pelas minhas mãos, quanto pela minha imaginação.
O sol a pino continuava a fustigar o cimento esbranquiçado da calçada, mas não retirava nenhum suor daquele rosto envelhecido, talvez menos idoso do que aparenta, talvez mais idoso do que mereceria. Naquele impasse de olhares, por um quase imperceptível movimento da boca, percebi que ele iria falar. Enfaticamente, com uma voz firme, eu disse:
- Não!
E pausadamente continuei:
- Não diga nada.
Pus a mão no bolso, peguei a carteira e percebi que não tinha nenhuma nota pequena. Retirei uma de R$ 50,00 e a dei para ele, com o devido cuidado para evitar que nossos dedos se tocassem. Aquilo o alimentaria por alguns dias, se é que este seria o uso do dinheiro. Ele sorriu e inclinou ligeiramente a cabeça numa forma de agradecimento, ou por um tempo que parecesse mais gratidão do que submissão. Nada disse então, apenas virei o corpo e caminhei pela mesma calçada com passos nem tão rápidos, nem tão lentos. Logo um casal de mãos dadas passou por mim, entretidos por uma conversa recheada de sorrisos. Depois veio uma mulher gorda, com cabelos bem longos, presos por uma espécie de elástico, inclinada para o lado devido ao esforço que tinha para quase arrastar uma sacola pesada (suponho), feita com um tecido forte, emborrachado, e com bolas vermelhas sobre um fundo branco. Não combinava com o vestido marrom dela. Ela não me olhou, nem a bela morena que rapidamente atravessou a rua. O único olhar que entrecruzou com o meu naquela manhã foi o do mendigo. Mas, quem era o mendigo?
Ainda ontem eu a olhei, com o pesar profundo da separação e olhos marejados por uma tristeza que queria irromper do meu peito. Calei na mente as palavras: Não! Não vá embora! Esperava dizê-las com o meu olhar, como uma súplica eterna, uma voz tardia que deveria assombrar sua decisão por uma mísera chance de permanecer naquele mundo, mais imaginado do que efetivamente criado, que eram nossas vidas. Por alguns instantes ela hesitou, mas virou as costas determinada, e se foi. Não havia razões pelas quais ela ficaria perto daquele corpo. O mesmo que a aquecia no frio e no calor da paixão, era agora também intocável. Tanto por ela, quanto por mim. A minhas palavras ficaram mais melancólicas, e o meu olhar tão inexpressivo quanto o de um cruel assassino. Os sorrisos se rareavam pelo cotidiano e a mente, outrora tão brilhante e criativa, se prendia no vazio da frustração. O que ela deixou não passa de um trapo e um corpo, que apenas sobrevive pelos intermináveis dias. Ou talvez não sobreviva, se aquele ônibus que rapidamente se aproxima, não conseguir frear.
(ficção)
segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015
Solidão.
"Asylbewerber03" by Andreas Bohnenstengel - http://andreasbohnenstengelarchiv.de/categories.php?cat_id=178. Licensed under CC BY-SA 3.0 via Wikimedia Commons - http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Asylbewerber03.jpg#mediaviewer/File:Asylbewerber03.jpg
Um olhar passeia pelo quarto vazio e percebe os mesmos móveis, que me acompanham há tantos anos. São as mesmas cores, os mesmos traços, os mesmos quadros. Parece que este que sou também me acompanha há muito tempo. Sou eu mesmo, sem nada a mais de relevante na personalidade, sem nada a menos porque não há muito o que perder. São as mesmas palavras, mas estão mais caladas, mais difíceis de encontrarem a liberdade para fora da boca; para fora do coração. Traduzem apenas um vasto silêncio que se estende até onde minha percepção investiga. Não há mais rastros daquela que por aqui passou. Os vestígios de alguém, que denunciariam talvez uma paixão, ou aquela incerteza confusa de sentimentos que constrói uma saudade, por ínfima que seja, já não podem mais ser vistos ou pressentidos. Decerto há um buraco no coração, há um buraco na vida e houve uma luz que se apagou para escurecer o meu cotidiano. A vida é realmente estranha. Nascemos sozinhos e passamos boa parte dela com nossos pais. Convivências distantes, que de certa forma se alheiam do processo de amadurecimento. Aí vem os amigos, que tagarelam, gracejam e zombam de tudo que pode ser colocado ou pensado nos dias. Vive-se como se com eles fôssemos herdar a eternidade. Depois ela aparece, rouba-te toda a significação da vida e te despoja de qualquer ambição que se possa caracterizar como própria. Entrega alguma coisa, de fato, mas logo leva tudo consigo. Por fim, novamente somos meninos, com a presença de alguém aqui e ali, cada vez mais rara, e sempre alheada do que você é. A única diferença é que há menos vozes, menos entusiasmo e menos vida.
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015
Infante!
Por Credits: Pierre Holtz / UNICEF CAR / hdptcar.net at hdptcar [CC BY-SA 2.0 (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0)], undefined
Você quer dizer que sou um menino ou um soldado? Ou ambos? Se assim for, não tenho muito a dizer além de que não há nada mais perigoso do que um soldado-menino. A guerra não é uma brincadeira que pode ser levada com graça, como se estivesse numa roda de amigos e sugerisse: - vamos matar alguns bandidos? Tiros de fantasia que são disparados mais por aqueles hormônios que começam a ferver no sangue, do que por uma intenção malévola. Na realidade, se um tiro carregar uma vida para a morte, o arrependimento enterrará a consciência. O menino chafurdará toda a sua existência porvir na lama e no esgoto da compunção que cobrirá sua vida. Se sua mão tremulante tomar um rifle para que olhos ameninados vasculhem o que tombar, não será uma escolha digna de combate. Esta instância última de defesa ou ataque, campo de medidas extremas, desapego da vida, negação da humanidade, não combinam com o que aqueles poucos anos testemunharam. Mas há casos que crianças são vetustas nas desgraças. Quando o entorno respira e transpira violência e a infância é deformada pela crueldade. Nestes casos eu não seria um soldado-menino porque eu nunca teria sido um menino. Teria apenas vivido uma vida de velho, de vontade decrépita e sonhos que nunca nasceram.
Como? Menino-soldado? Nem pensar porque não é somente uma questão de ter insciência do que for feito, nem um desvio precoce de destino: é a própria antítese da infância. Rouba-se tudo: seu tempo, sua vida, seus familiares. Tudo que é estruturante, tudo que possibilitaria fornecer solidez aos seus sonhos. Entrega-lhe uma arma e uma crença, nada mais. Como tudo isto que vemos ao nosso redor, às vezes transvestido de ideologia, às vezes chama-se de fé, mas no fundo são conceitos manipulados por aqueles que se dizem sábios, que dizem guardar o repositório de conhecimentos difusos, cujas malhas de ligação de ideias são por vezes tão complexa que qualquer afirmação pode ulular delas. Qualquer mesmo! O que inclui aquelas de se criar inimigos (alguns dirão diabos, demônios, tinhosos, imperialismos e assim por diante), de se amplificar problemas, de turvar visões. O menino neste meio enxerga pelos olhos de outros porque nunca viu o que ele poderia ser.
domingo, 1 de fevereiro de 2015
Brilho nos Olhos
By Howie Le from San Jose, USA (eye full) [CC BY 2.0 (http://creativecommons.org/licenses/by/2.0)], via Wikimedia Commons
Este que está aqui aparece em palavras, que formam dizeres e tentam montar imagens em teu coração. São palavras que denunciam estes olhos que marejam, enquanto busco nos significados rastreados pela semântica, os significados da existência. São elementos que se equilibram entre a escuridão e a luz. E se me deixei levar pela luz para o mais longe que os meus dons permitem, o outro lado estava imerso no mais longe que a escuridão pode me prover. Onde encontrei o que há de mais obscuro na minha realidade e destino. Eu sempre me senti assim ao vagar pelos conhecimentos que a minha sede de curiosidade investigava. Eu sempre me senti assim ao abraçar as minhas obras e abandonar minha vida. Harmonia não é algo fácil quando se lida com extremos, e quem pode me trazer para a claridade é aquela que caminha mansa pela minha vida. Esquecerei os vestígios de discursos que te sugerem a inutilidade do cotidiano, e induzem um cansaço perene numa alma rodeada de sonhos. As palavras lançam meus sentidos na peregrinação de encontrar a paz do colo desta mulher. Cheirar aquela pele sedutora na procura de uma fragrância que desperte o desejo. Percorrê-la com o toque que avança pelas indiscrições veladas que a prudência contém, depondo as vestes e os receios de deitá-la no sempre. Saborear os lábios e largar os sonhos de outros caminhos para se perderem, soprados pelo hálito que invade o meu espírito e aquele homem que estava escondido do ordinarismo dos dias. Ouvi-la sussurrar palavras agora revestidas de uma fêmea, que abre as portas da paixão para gritar aqueles sons represados simplesmente por não terem alguém perto o suficiente do seu coração. Olhá-la com todo o brilho que reflete um amor, que lentamente nasce acompanhado do tempo que quer virar eternidade.
sexta-feira, 30 de janeiro de 2015
Verde Insistente
Google Maps - Street View
Uma nova manhã me desperta. Bem como todas as manhãs que
invadem com suas claridades a minha janela entreaberta, e picota pequenos
pedaços de sol que fugiram pelas persianas até o chão do meu quarto. Em seu
caminho iluminado pequenas poeiras flutuam, como os pássaros que prenunciam a
manhã lá fora, uma algazarra de pios que alegram aquelas momentos madrugadores. Junto
com a preguiça de um corpo indolente pelas horas de sono, espero o despertador
gritar com um barulho estridente e metálico. A fina xícara de porcelana, com
decalques alemães que ilustram rosas bem detalhadas, tanto que até creio
cheirá-las, me espera ao contrário na mesa da copa. A pequena colher também
deita ao lado e a chaleira permanece impávida, na espera do café, cujo cheiro
estará ao meu redor e me fará companhia, além de acrescentar mais um perfume
nesta manhã e na pressa de sair.
A porta range e o gato malhado me olha e foge meio sem direção,
apenas para longe. Alguns pássaros se assustam e ouço um aparvalhado bater de
asas. Penso que surpreendi aquelas vidas que se alojaram na minha varanda e sigo em frente até ganhar a
pequena calçada sob os meus pés. Uma calçada tão estreita que mal cabem duas
pessoas lado a lado. Estou sozinha e sei que a única coisa que terei que fazer
é esquivar das pessoas que vem em sentido contrário. Mas elas são raras porque
não é a direção do metrô. Dou uma última olhada para o meu lar e para as
árvores, que agora dançam com uma brisa que refresca este verão inclemente, e
mostram um verde insistente, que se atreve a estar ali, que se insinua numa
batalha sem fim contra o cinza asfáltico e o amarelo desbotado das casas que se
perfilam até onde a distância alcança. Um verde persistente que se nega a
mudar, que se recusa a fugir para lembrar que a natureza da vida está além dos
pratas, brancos e pretos dos carros. Um verde que põe um cheiro de clorofila
entre a fuligem dos diversos pós que flutuam sobre a cidade. Odores dos carros,
das fábricas, do Tietê, dos cigarros, de borracha, de tudo que exala aquele
cheiro de cidade, aquele cheiro de São Paulo.
Google Maps - Street View
Alguns passos depois, encontro a primeira alma do dia. Uma
cabeça branca, que já não posso mais dizer grisalha. Os fios pretos já a
abandonaram, aparentemente há muito tempo. Devido ao calor, ele veste uma
camiseta sem mangas, bem vermelha, talvez para contrastar com a cidade e mostrá-lo
para as pessoas que por ali passam. Ele me acompanha com o olhar até o meu caminhar
passar o mais próximo possível dele. Não sei o seu nome, nem ao menos quem ele
é, mas no meio daquele rosto vincado de rugas, neste momento, aparece um
sorriso. O que me faz ouvir no seu silêncio: – Bom trabalho, filha! Nem sei se
impressão ou realidade, de qualquer maneira o seu rosto assim me disse. Uma
candura emoldurada por um pequeno barracão, pixado por aquelas letras horríveis
e ininteligíveis das gangues. Ao lado de
uma mesa vermelha, com quatro cadeiras também vermelhas. Talvez logo mais ali
se reúnam mais algumas cabeças branquinhas, e até grisalhas, e comentem
assuntos idos de tempos idos. A cidade ainda os esconde nesta manhã.
Google Maps - Street View
Na sequência vem o borracheiro Tadeu. Como eu sei o seu
nome? Não, eu nunca conversei com ele, apenas sei porque algumas vezes ele põe
um cartaz: “Contrata-se borracheiro, falar com Tadeu”. Às vezes eu o vejo
devorar algum sanduíche, sentado em três pneus empilhados. Outras vezes ele
está montando um pneu, ou desmontando, ou testando a câmara na água suja de uma
banheira antiga, também suja. Mas, na maioria das vezes ele está apenas a
espera de um furo, sentado ou encostado na parede do seu minúsculo
estabelecimento, que mais parece um corredor escuro do que uma borracharia.
Raramente ele me olha, e mais raramente ainda ele me cumprimenta. É apenas mais
um personagem que vive no meu caminho até o metrô. Como os vendedores das lojas de roupas
econômicas, ou os mecânicos daquelas oficinas de carro. Ou mesmo aqueles
manobristas do estacionamento que está ao lado da estação, que guardam os
carros das pessoas assustadas em enfrentar o trânsito do centro da cidade. Jovens
que se divertem em passar raspando um carro pelo outro, condensando-os tanto
para caberem mais. São personagens acidentais de uma cidade imensa, que me
acompanham incógnitos todas as manhãs.
Google Maps - Street View
(ficção)
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